Setembro é um mês simbólico para a luta por direitos das pessoas com deficiência (PCDs) e na conscientização pela acessibilidade. Apesar dos inúmeros avanços, ainda há pouco o que comemorar, sobretudo no jornalismo brasileiro. Segundo pesquisa de 2024 do movimento Web para Todos em parceria com a BigDataCorp, de 26,3 milhões de sites analisados, apenas 2,9% eram acessíveis. Entre os portais de notícias, 96,6% apresentavam falhas de acessibilidade, desde imagens sem descrição até ausência de legendas em vídeos.
Para falar sobre todo este cenário, a Rede JP conversou com Larissa Pontes, jornalista, especialista em acessibilidade e fundadora do Instituto Eficientes, organização que desenvolve projetos como o Portal Eficientes, o Aplicativo Lume e o Congresso Inova.aê, voltados a participação e inclusão da acessibilidade na comunicação. Ela, que participou anteriormente como palestrante no curso “Diversidade e Inclusão na Comunicação Pós-Cultura Digital”, que contou com a Rede Jornalistas Pretos na realização, falou sobre desafios e caminhos da acessibilidade a PCDs no jornalismo.
O longo caminho: das ferramentas às redações
“Nos últimos anos, percebemos que algumas empresas e veículos de comunicação começaram a adotar práticas de acessibilidade, seja com legendas, avatares em libras, descrição de imagens ou iniciativas de linguagem simples […] Na prática, ainda estamos em um estágio inicial”, analisa Larissa sobre o passo a passo da acessibilidade.
“Tecnicamente, ainda há falhas em práticas básicas, como sites incompatíveis com leitores de tela, falta de hierarquia da informação, conteúdos audiovisuais sem audiodescrição ou legendas, e a linguagem pouco acessível, que afasta públicos diversos.No fim, os veículos erram justamente por não entenderem a acessibilidade como parte integrante da qualidade jornalística. A inclusão plena exige tanto mudanças de representação quanto mudanças práticas, de fluxo e de mentalidade”, complementa.
Ela em seguida aponta a falta de representatividade nas redações e outras barreiras. “As maiores barreiras que impedem a inclusão das pessoas com deficiência (PCDs) é o capacitismo dentro das redações e empresas, o que se reflete tanto na ausência de pessoas com deficiência nas equipes quanto na forma como elas são representadas nas matérias”. Larissa observa que, embora a pauta da diversidade tenha ganhado força nos últimos anos, é importante aliar a representatividade PCD e mudar a liderança das equipes.
“Essa pauta, que ainda precisa ser muito mais levantada, também deve ser sobre inclusão de pessoas com deficiência, dentro das redações. Vemos muito poucos jornalistas com deficiência. E isso acontece porque as empresas acham que não darão conta ou não acreditam na capacidade dessas pessoas. Isso só irá mudar quando essas pessoas estiverem ocupando as redações e cargos de liderança.”
A necessidade da constante acessibilidade no jornalismo e suas ferramentas
O jornalismo dentro das redes têm incorporado recursos de acessibilidade — como legendas automáticas e descrição de imagens —, mas a experiência real de navegação ainda deixa lacunas, em grande maioria causadas pelos próprios softwares, de acordo com Larissa. “As legendas automáticas, por exemplo, evoluíram, mas continuam apresentando erros de ortografia, nomes próprios e termos técnicos, o que compromete a compreensão”.
Ela lembra que 80% das pessoas surdas têm dificuldades com a leitura da língua escrita, de acordo com a Federação Mundial dos Surdos (WFD). “A legenda, sozinha, não basta e as aplicações precisam aprimorar esse meio”.
Larissa frisa que, apesar da tecnologia nos softwares e aplicações serem independentes, sua eficiência depende da estruturação correta de sites e plataformas, o que ainda não é regra no Brasil e no mundo. “Se não houver hierarquização correta da informação, descrição adequada das imagens, botões acessíveis, contraste de cores e outras funcionalidades previstas nas diretrizes de acessibilidade, o leitor de tela encontrará diversas barreiras e a navegação não será efetiva.”

O financiamento e apoio legal
O financiamento e apoio legal Por trás da falta de acessibilidade nos veículos de mídia está um problema ainda mais estrutural: falta de investimento. Grande parte dos veículos independentes inclusivos, como o próprio Eficientes, mantém suas atividades por meio de editais, parcerias e venda de serviços de consultoria, eventos e treinamentos em acessibilidade.
“Quando há financiamento, conseguimos investir em produção de conteúdo com audiodescrição, legendagem de qualidade, intérpretes de Libras (Linguagem Brasileira de Sinais), consultoria especializada, equipe presente. Quando não há, precisamos reduzir o alcance ou adaptar com soluções mais enxutas. Daí a importância”, explica Larissa.
A falta de apoio financeiro sustentável impede que projetos de comunicação acessível se consolidem. “Muitas empresas ainda não enxergam a acessibilidade como investimento estratégico, mas como custo ou obrigação legal. Há potencial e demanda, mas falta um ecossistema de apoio financeiro que permita que a acessibilidade seja permanente e não apenas pontual.”
A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) reconhece a acessibilidade comunicacional como um direito, mas ainda é pouco aplicada, de acordo com a especialista. Ela defende que a legislação seja aprimorada com critérios técnicos claros, prazos de cumprimento e mecanismos de verificação. “Não há fiscalização, muitas empresas e veículos ignoram a legislação porque sabem que dificilmente serão punidos. Não basta dizer ‘tem que ser acessível’, é preciso prever prazos, critérios técnicos claros, sanções e instrumentos de monitoramento e avaliação.”
A representatividade negra dentro da inclusão
Se o jornalismo ainda falha em ser acessível para pessoas com deficiência, o desafio se amplia quando cruzado com raça e classe. A ausência de pessoas negras com deficiência nos espaços de comunicação é quase total – uma invisibilidade dupla que exige ser combatida.
Para Larissa, a inclusão plena exige mudanças práticas, de mentalidade e de representatividade. Isso significa rever estruturas de contratação, garantir acessibilidade linguística e técnica, e principalmente valorizar vozes negras. “O fato de podermos falar e sermos representativos é mostrar que sendo pessoas com deficiências negros e outros grupos exercem um ponto na sub-representação, que precisa ser revisto […] daí a importância da interseccionalidade, até em conhecimento a práticas e modos de acessibilidade que outras pessoas conseguem.”
A conscientização para além de uma data
Complementando o caráter interseccional, Larissa frisa que mais do que desenvolver soluções sobre pessoas com deficiência, é preciso criá-las com elas. “Não basta falar ‘sobre’, é preciso produzir ‘com’. Até porque o lema do movimento das pessoas com deficiência é: ‘Nada sobre nós, sem nós’.”
Ela conclui dizendo a importância de se pensar a acessibilidade no jornalismo e nos diversos campos como uma luta perene, além de um mês. “O setembro é um convite à reflexão, mas também à responsabilidade. A acessibilidade no jornalismo precisa deixar de ser pauta e se tornar prática. E isso só será possível quando a presença de pessoas com deficiência e de suas realidades próprias deixarem de ser exceção e virarem realidade.”