A liberdade de imprensa é um direito constitucional. Mas, no Brasil, o exercício desse direito ainda é desigual — especialmente para jornalistas negros e negras, que enfrentam ataques digitais, racismo institucional e a falta de amparo jurídico.
Segundo pesquisa do Centro de Defesa da Liberdade de Imprensa e dos Jornalistas (CDJor), 50,8% dos ataques a jornalistas em 2024 tiveram como alvo mulheres, sendo o assédio online a principal forma de violência entre as profissionais negras. Fora do país, não é diferente: o Fórum de Jornalismo Argentino (FOPEA) registra que 67% das profissionais negras são vítimas de ataques no ambiente digital.
Iniciativas como a Rede de Proteção Digital para Comunicadoras Negras (REPCONE) — lançada pela Rede de Jornalistas Pretos pela Diversidade na Comunicação (Rede JP) — fortalecem uma nova lógica de defesa e apoio mútuo entre o campo jurídico e o jornalismo negro.
Para falarmos da importância do tema e caminhos para tornar a advocacia negra um suporte contínuo conhecido por mais pessoas no jornalismo, conversamos com Wesley Santana, presidente regional (filial de Sergipe) da Associação Nacional de Advocacia Negra (ANAN) — parceira do curso — e advogado.
O racismo institucional: da imprensa ao Direito
Ao refletir sobre as principais manifestações de racismo que inibem profissionais negros de denúncia, Santana sublinha o caráter “sistêmico” e que o Judiciário, como porta-voz do Legislativo, tem um peso importante nessa construção. As manifestações mais graves, de acordo com o advogado, refletem-se na seletividade penal e na forma como a lei é aplicada hoje.
Ainda assim, o presidente regional da ANAN destaca as recentes mudanças legislativas e jurisprudenciais como respostas à pressão social do setor público como sinais de mudança para um esclarecimento: “Temos a mudança da lei penal que equipara o crime de injuria racial ao de racismo, com o advento da Lei 14.532/2023. A verdade é que diante das cobranças advindas da sociedade, de movimentos sociais e negros; e da própria forma como tudo é veiculado, inclusive a importância da imprensa na disseminação da informação. Além das redes sociais, somado a esse pensamento de coletividade do povo negro e dos que fazem um combate antirracista. Há uma cobrança muito grande por respostas. Seja por mudanças na legislação, como na interpretação dada.”
Ele em seguida destaca como iniciativas como a REPCONE criam uma “espiral de conscientização”. Para o advogado, há um sinal de mudança em vista do que ocorria na advocacia como um todo. “No mundo acadêmico e profissional entendo que a mudança seja inserida na conscientização desses futuros profissionais sobre o contexto social e o processo de colonização do Brasil e os reflexos negativos que hoje maculam a imagem do povo negro. A importância de conscientizar destes espaços de luta pelo que sofrem e do peso e motivação do que sofrem é alta. Criar esses espaços simboliza um aceno social e profissional.”
Advocacia negra: a confiança como forma de proteção

Para o presidente da ANAN, a advocacia negra é uma aliada direta do jornalismo antirracista. Ele frisa como campanhas e movimentações de inclusão nos espaços do direito devem se aprimorar para daí cumprirem papel social amplo. “Os escritórios de advocacia devem realizar campanhas para reserva de vagas envolvendo profissionais negros e sempre trazer consigo o espirito de inclusão e motivação a esses profissionais no espaço que atuam.”
Ele denuncia como é comum o sentimento de isolamento de colegas de profissão negros e, principalmente, como a falta de representatividade consolida preconceitos. “Não há surpresa, por exemplo, de colegas que são barrados nas portas dos fóruns e pedida a credencial de advogado mesmo se identificando como tal. Os relatos são constantes! E mesmo quando nos apresentamos enquanto profissionais devidamente habilitados para o cargo, somos postos a prova o tempo todo!.”
“Eu, particularmente, já passei por situações de não reconhecimento como profissional em diversos ambientes. Já fui confundido, mesmo trajando um terno com: Pastor, segurança e até motorista de aplicativo, por mais estranho que pareça. Isso se dá justamente na dificuldade dos olhos da nossa sociedade no encararmos apenas no exercício de funções de subserviência”, complementa.
Mulheres negras: o elo mais vulnerável
As mulheres negras comunicadoras enfrentam uma sobreposição de violências — de gênero, raça e profissão. “Se o racismo em si já é um problema. Imagine-se quando se trata de mulher negra em uma sociedade misógina, machista e que ainda impera o patriarcado”, já aponta Wesley.
Ele frisa que, além das próprias profissionais negras nas redações muitas das vezes estarem impedidas de cargos de maior autonomia serem fatores cruciais de inibição a denúncias de ataques, a falta de representatividade feminina em cargos e atuação na Ordem de Advogados do Brasil (OAB) corrobora os problemas. Apesar da Resolução Nº 5/2020 tenha estabelecido a paridade de gênero e a cota racial de 30% para a direção da OAB, a luta diária continua, segundo o advogado.
“Há uma dificuldade de ingresso do exercício profissional dessas mulheres advogadas no seu dia a dia. A partir da resistência de serem reconhecidas como profissionais nas entradas dos fóruns onde são comumente solicitadas as credenciais, além da própria sociedade que em regra opta por homens como profissionais da advocacia diante o machismo e do patriarcado enraizado que tendem a vê-las como profissionais capacitadas, o que dificulta bastante a progressão na carreira e, por suas vezes, os espaços de acolhimento onde as mulheres querem e podem se sentir confortáveis em falar.”

Em casos de violência contra a mulher, as falhas do sistema de justiça são nítidas segundo Wesley, em especial na violência de gênero e raça. “Se tratando de mulheres negras é importante destacar a forma como os casos são subnotificados… até há uma certa naturalização por parte de setores que deveriam ter uma política específica. Muitas vezes em razão do sistema ‘romantizar’, tais condutas de denunciar acabam se silenciando, pois há desmotivação por familiares e pessoas próximas e a chefia dos locais a tratar como algo da própria relação ou um ‘é assim mesmo’”.
Direito e Jornalismo: uma aliança democrática
Para o advogado, o fortalecimento de redes entre jornalistas e juristas negros é uma estratégia de sobrevivência democrática e proteção da integridade da população negra. Wesley frisa que na notícia dada por um veículo negro há mais que uma reportagem: existe um comprometimento com a causa racial.
“A empatia é ponto crucial quando se trata da comunidade negra na comunicação. Entendo que sempre que uma notícia é produzida por um dos nossos, por trás daquela matéria há um comprometimento com a causa. É quando se fala em no Direito de estreitar a percepção social de que o profissional negro ou negra está preparado para procurar ajuda e ser parte do debate sobre o tema. E, inevitavelmente, reforça que a população negra pode estar onde quiser, servindo de referência para outros e obter esses espaços como trocas de ajuda e evolução.”, completa.
Ao avaliar o impacto da parceria entre a ANAN e o REPCONE, Wesley analisa o legado deste e outros movimentos. “Tudo é um processo. Os frutos serão colhidos, acredito eu, para mais de dez anos e no futuro. Os efeitos das políticas afirmativas somente terão resultados após uma mudança de ascensão socioeconômica dos negros e quando passarmos a enxergar com mais naturalidade corpos negros ocupando lugares de destaque e aos poucos, com política de cotas, com estes espaços acadêmicos e outras mentorias, nos fortalecemos e fortalecemos a advocacia negra e seu impacto para todos.”, conclui