Em pleno Setembro Amarelo, vivemos em um país que ainda reluta em encarar o ambiente do jornalismo como fator de adoecimento mental. De acordo com a pesquisa do Perfil do Jornalista Brasileiro, 66,2% dos jornalistas participantes declarou se sentir estressado; 34,1% em diagnóstico formal e 20,1% com transtorno mental.
Com o advento das redes e entre profissionais negros, os casos se acentuam em ataques coordenados e racistas, que acrescentam mais ainda um vértice no adoecimento. Ainda assim, instituições e redes de psicologia negra estão dedicadas a atendimento, grupos de pesquisa e parcerias a estas populações.
É o caso do Instituto Sankofa de Psicologia e Educação, que além de renomado enfrentamento ao adoecimento psíquico da população negra, atua também na construção de novas possibilidades de cuidado coletivo. Em pleno mês de prevenção ao suicídio e conscientização da saúde mental, ele integra uma parceria com a Rede JP na Rede de Proteção Digital a Comunicadoras Negras (REPCONE), oferecendo atendimentos psicológicos em grupo voltados a mulheres negras atuantes na comunicação da América Latina.
Com as inscrições abertas – e gratuitas – através deste link, a colaboração marca uma nova fase nas atividades do Instituto, fundado em 2019. Em entrevista à Rede JP, a administradora geral do Sankofa, psicóloga e professora, escritora, palestrante, Roberta Federico, fala da importância da construção coletiva de apoio à comunicação negra no Brasil e mundo.
Traçando bases da psicologia afrocentrada
A ideia que germinou o Instituto Sankofa remonta a 2009, quando Federico teve contato com um texto do professor Wade Nobles (publicado no Brasil no livro “Afrocentricidade – uma abordagem epistemológica inovadora”, de Elisa Larkin). No ano seguinte, em viagem aos EUA para a convenção anual da ABPsi — Associação de Psicólogos Negros —, a psicóloga teve clareza do caminho a seguir.
Mais do que uma abordagem clínica, a Psicologia Preta atua no campo político e social, reconhecendo a existência negra em meio a um sistema que historicamente nega essa humanidade. “Ela se diferencia por ter uma visão que vai além do contexto individual e ter uma compreensão mais do que sistêmica, política. É uma forma de compreender a pessoa de ascendência africana num contexto racista, as adaptações subjetivas que são realizadas para garantir nossa permanência e sobrevivência nesses contextos”.
A racialidade na saúde mental comunicativa
Apesar de ser a maior campanha de prevenção ao suicídio no país, o Setembro Amarelo ainda falha ao não incluir o racismo como fator de risco à saúde mental. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o suicídio é uma das principais causas de morte entre jovens — e no Brasil, negros estão em maior risco, sobretudo por viverem sob constante violência e exclusão institucional.
Nesse sentido, o trabalho do Instituto Sankofa e de coletivos como a REPCONE é decisivo para preencher esse vácuo: ao oferecer suporte psicológico racializado a comunicadoras negras, a proposta vai além da escuta terapêutica tradicional: ela afirma vidas negras e rompe com o mito da universalidade “neutra” da dor. “De uma maneira geral, as pessoas acreditam que a psicologia é uma ciência neutra e ficam surpresas quando veem que não é. As camadas são fundamentais.”

De acordo com Roberta há um apagamento acadêmico no âmbito profissional da própria área o que dificulta consideravelmente o debate em todas as outras. “Ainda que a Psicologia Preta enquanto disciplina já tenha surgido em 1968, no contexto da luta pelos direitos civis dos afro-americanos e existam dezenas de livros e um periódico científico exclusivo sobre o assunto, as universidades e faculdades invisibilizam a disciplina. E não podemos fazer isso. Seria importante que os livros de História da Psicologia incluíssem a Psicologia Preta. E que os cursos de graduação, a oferecessem na forma de disciplina. E isso não acontece”, aponta.
Essa negligência se reflete na prática clínica, onde pacientes negros relatam frequentemente o não reconhecimento de queixas relacionadas ao racismo: “Infelizmente em muitos cursos de graduação, não são oferecidas base teóricas para que os profissionais compreendam as desigualdades de classe, raça e gênero. Como resultado, pacientes relatam que psicólogos sem formação adequada desconsideram queixas de racismo trazidas por pacientes negros.”
Comunicação e compreensão racial de mundo como parte do cuidado
O trabalho em rede, para além dos muros institucionais, é parte fundamental da atuação do Sankofa. Roberta destaca como a união entre diferentes áreas, como o jornalismo, a educação e os movimentos sociais, pode produzir alternativas concretas de cura e enfrentamento. “Diversificar os campos de atuação mostram como todos os profissionais podem estar e em algum momento se deparar com dilemas de adoecimento que são de sua identidade, e que dizem respeito a racialmente e socialmente o que você é. Uma extensão do seu lugar no mundo.”
Parcerias com organizações como a Diáspora Black, a própria Rede JP, entre outras têm permitido que o Instituto atue tanto em contextos internacionais quanto periféricos — com ações que vão desde formações para famílias adotivas até rodas de conversa em comunidades como Manguinhos, no Rio de Janeiro.
Ela narra a parceria com o Diáspora Black, organização que promove turismo afro-referenciado com visitas a locais e territórios africanos, como um resgate importante. “Nos contactaram para suporte psicológico a um grupo que iria fazer o Circuito de Herança Africana. Foi muito interessante trabalharmos com preocupação com as possíveis reações emocionais que as pessoas poderiam ter ao entrar em contato com aquele lugar histórico e de tudo que aquela simbologia traz.”
Conexões internacionais e apoio global

O Instituto Sankofa tem participado ativamente de ações internacionais, que segundo Federico, são pontos cruciais de ativismo perante a saúde mental negra mundial. Entre eles, o evento “Kweli” — palavra em swahili que significa “verdade” —, cuja terceira edição foi realizada em Salvador, Bahia, em 2024. Junto à Associação Kweli, da Angola, o Insituto esteve na realização do encontro, que durou quatro dias e contou com uma série de debates e mesas de ativistas angolanos e a importância de suas perspectivas históricas a distintas populações negras, como o Brasil.
Outro evento de relevância foi a participação na edição 2025 do II Accra Summit, encontro promovido pelas doutoras Joy Degruy e pela Enola Aird, referências na saúde mental negra e impacto antirracista na Psicologia, em Gana. O encontro contou com, além do Instituto, diversos terapeutas, psicólogos, artistas e ativistas, que inseriram a pauta da cura e formas de reparações sociais pelos séculos de tráfico negreiro e escravização em todo o mundo, que incluem a difusão da saúde mental afrocentrada.
De acordo com Roberta, tal construção global faz parte de um aprimoramento à saúde mental negra mundial. “Esses diálogos são fundamentais, pois o Brasil tem uma posição de destaque na condição de país com maior população de ascendência africana fora do continente. Precisamos dialogar mais em termos globais, e entender que nossa experiência é coletiva e não é exclusividade do Brasil.”
A construção de redes parceiras como cura

Mesmo com desafios, parcerias e ações fornecem uma luz no fim do túnel para que profissionais possam se curar e pensar em saúde mental. “Nos ciclos de estudo, as pessoas costumam ficar surpresas quando conto a história da Psicologia ocidental e mostro como ela fomentou o racismo científico”. Em oficinas, emoções afloram. Durante o Congresso de Educação Afrocentrada, em 2024, um debate sobre autorresponsabilidade entre pessoas negras levou participantes às lágrimas. “Relataram diretamente que as palavras ditas estavam lhes tocando”.
Para Roberta, ao resumir o Sankofa e a importância do antirracismo no tratamento psicológico entre profissionais é clara: “O que fazemos e devemos é desconstruir o mito da inferioridade negra, cuidar dos traumas causados pelas opressões raciais e recuperar a memória de saúde e potencialidades que nós temos”.
Se você ou alguém que você conhece está passando por sofrimento psíquico, procure ajuda especializada. O CVV – Centro de Valorização da Vida oferece escuta gratuita 24h através do número de telefone 188. Além do contato, o site é www.cvv.org.br.