
Por Kelvyn Araujo (pauta) e Ranieri Soares
Um recente estudo divulgado pelo projeto ReconexĂŁo Periferias da Fundação Perseu Abramo, em colaboração com a organização Iniciativa Negra, trouxe Ă tona uma preocupante situação sobre a violĂȘncia de gĂȘnero no Brasil. O estudo, intitulado ‘Chacinas e a Politização das Mortes no Brasil: estudo de casos’, revelou nĂșmeros alarmantes entre os anos de 2011 e 2020. De acordo com o relatĂłrio, durante esse perĂodo foram registradas 42 chacinas associadas ao feminicĂdio, resultando em aproximadamente 111 vĂtimas. AlĂ©m disso, outras 405 mulheres perderam suas vidas em chacinas por motivos diversos. Esses dados destacam a persistĂȘncia de uma grave questĂŁo de violĂȘncia de gĂȘnero no paĂs.Â
A pesquisa, iniciada em 2018 como parte do projeto ReconexĂŁo Periferias, analisou a violĂȘncia no paĂs, focando em homicĂdios mĂșltiplos, com trĂȘs ou mais vĂtimas fatais. O objetivo foi compreender os fatores subjacentes a esses eventos e contribuir para estratĂ©gias de intervenção. Segundo o sociĂłlogo e coordenador do projeto, Paulo Ramos, a pesquisa busca entender como as chacinas sĂŁo tĂĄticas empregadas por grupos que disputam territĂłrios e recursos econĂŽmicos e simbĂłlicos no paĂs. Ramos ressalta que essas mortes geralmente sĂŁo reivindicadas por grupos especĂficos e fazem parte de um conjunto de açÔes coletivas historicamente transmitidas entre seus membros.
O estudo revelou que mulheres negras enfrentam um risco duas vezes maior de serem vĂtimas de homicĂdio e feminicĂdio em comparação com mulheres nĂŁo negras. Em 2021, 2.601 mulheres negras foram assassinadas, representando 67,4% do total de mulheres mortas no perĂodo. Isso equivale a uma taxa de 4,3 mulheres negras mortas para cada 100 mil habitantes, quase 45% maior do que a taxa entre mulheres nĂŁo negras, que foi de 2,4 por 100 mil. AlĂ©m disso, a pesquisa examinou dois casos emblemĂĄticos de violĂȘncia: o Massacre de Realengo em 2011, no qual um ex-aluno entrou em uma escola e matou dez meninas e dois meninos, e a Chacina de Campinas em 2017, na qual um homem invadiu uma festa de famĂlia e matou dois homens, nove mulheres (incluindo sua ex-esposa) e seu prĂłprio filho de 8 anos. Durante a pesquisa, observou-se que os agressores em ambos os casos estavam associados a grupos masculinistas, que operam de maneira organizada online e atĂ© mesmo incentivam crimes.
RelatĂłrio do FĂłrum Brasileiro de Segurança PĂșblica, divulgado em março deste ano, aponta que, a cada seis horas, uma mulher Ă© vĂtima de feminicĂdio no Brasil. Desde a aprovação da lei nÂș13.104/2015, que considera o feminicĂdio como um crime motivado pela condição de gĂȘnero da vĂtima, aproximadamente 10,7 mil mulheres foram mortas no Brasil. Os dados alarmantes mostram um aumento de 1,6% nos casos em 2023 em relação ao ano anterior, totalizando 1.463 vĂtimas. O feminicĂdio envolve situaçÔes de violĂȘncia domĂ©stica e familiar, alĂ©m de menosprezo ou discriminação Ă condição de mulher. O crime Ă© punido com penas que variam de 12 a 30 anos de prisĂŁo.
ViolĂȘncia contra mulheres no Brasil exige abordagem interseccional
No Brasil, as desigualdades sociais sĂŁo evidentes e a interseção entre violĂȘncia de gĂȘnero e fatores como etnia, raça e orientação sexual ganha destaque. Em entrevista Ă Rede JP, as pesquisadoras do projeto ReconexĂŁo Periferias da Fundação Perseu Abramo discutiram essa interseccionalidade. Elas ressaltaram a complexidade do tema, mostrando como a percepção do “inimigo” na violĂȘncia Ă© moldada pela junção de gĂȘnero, raça e idade. Isso sublinha a necessidade de abordagens que levem em conta sexismo, racismo, LGBTfobia e misoginia. Segundo as pesquisadoras, a violĂȘncia contra mulheres negras, trans e travestis Ă© frequentemente ignorada pela mĂdia convencional.
“O corpo que importa para esse tipo de mĂdia Ă© o do ‘cidadĂŁo de bem’, que Ă© necessariamente homem, branco, heterossexual, cisgĂȘnero e morador de ĂĄreas abastadas das cidades”, destacam.
A disseminação de valores misĂłginos e de extrema direita na sociedade brasileira tambĂ©m Ă© apontada como um fator que influencia a escalada da violĂȘncia contra mulheres. “Esses elementos constituem a racionalidade bĂ©lica de estado e tambĂ©m uma parcela significativa de civis que se encontram nesses fĂłruns anĂŽnimos misĂłginos e neonazistas”, afirmam as pesquisadoras.
Quando questionadas sobre o papel das mulheres na comunicação para abordar e combater a violĂȘncia feminina, especialmente nos contextos de desigualdade racial e de gĂȘnero, as pesquisadoras ressaltam a importĂąncia do protagonismo feminino.
“Olhares mais atentos de mulheres, pessoas racializadas, pessoas LGBTQIAPN+ podem trazer perspectivas mais interessantes ao noticiar esse tipo de caso”, enfatizam.
Diante dos desafios atuais, as pesquisadoras apontam estratĂ©gias para desafiar as representaçÔes estigmatizantes das mulheres pretas, trans e travestis na mĂdia brasileira em relação Ă violĂȘncia. “Considerar as assimetrias de poder Ă© uma tarefa urgente; reconhecer a relevĂąncia das polĂticas de ação afirmativa nas equipes, garantir diversidade em todas as frentes de atuação”, concluem.
O estudo destaca a necessidade de uma abordagem sensĂvel e responsĂĄvel por parte da mĂdia hegemĂŽnica brasileira para promover a conscientização e a mudança social em relação Ă violĂȘncia de gĂȘnero. Ao colocar em destaque as vozes marginalizadas, esse estudo oferece uma visĂŁo crĂtica e propositiva para enfrentar os desafios enfrentados pelas mulheres brasileiras, especialmente aquelas de minorias Ă©tnicas e de gĂȘnero, na busca por justiça e apoio apĂłs serem vĂtimas de violĂȘncia.