Encontro, o primeiro presencial da iniciativa, contou com a palestrante, comunicóloga e acadêmica mesclando experiências e relatos pessoais como impulsionamento de aprendizado nos alunos
Nesta última sexta-feira (5), o “Diversidade, inclusão e novos formatos no jornalismo pós-cultura digital”, projeto de extensão de ensino promovido pela Rede Jornalistas Pretos em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), recebeu a jornalista, professora, pesquisadora e doutora Rosane Borges para mais um dia na série de aulas promovidas desde março último. Desta vez, lhe coube tratar de um tema de suma importância e atualidade dentro da comunicação: o valor da presença feminina e a diversidade de gênero dentro da área.
Em uma extensa e produtiva aula, Rosane abordou diversos tópicos da temática, sob um prisma bastante analítico e versátil — no qual discorreremos mais sobre nos parágrafos seguintes. Indo desde a representação midiática e participação das mulheres no campo da comunicação, passando pela análise de estereótipos femininos ocorridos nestes meios e chegando até a importância do debate de diversidade de gênero (dentro também, claro, de um aspecto racializado) multimídia como um todo, a acadêmica tornou a experiência aos estudantes, que estiveram presencialmente — pela 1ª vez desde o início do curso — e online, extremamente rica, completa e, em muitos momentos, quase informal. Tudo isso ajudou que o conteúdo ganhasse distintas formas de absorvição, o grande trunfo da palestra.
Conforme dizemos anteriormente, a versatilidade em comandar um debate de temática tão atual, séria, importante e negligenciada dentro da área comunicativa nem sempre é fácil de se fazer. Contudo, quando se orna o conhecimento em torno do assunto junto a experiências pessoais vividas pelo convidado os correlacionando para que todos os pontos daquele mote fiquem claros, tudo fica mais fluido, fácil, didático e acessível aos estudantes. E foi esse o mérito de Rosane na aula, que em diversos momentos arrancou elogios ‘desbocados’ dos alunos à baixo volume, tamanha a eloquência e repertório da acadêmica.
A aula, que pode ser conferida na íntegra pelo YouTube dentro do canal da UFRJ (assim como todas do curso até o momento), começa com a pesquisadora ressaltando a importância do tema, salientando que a luta por uma presença da inclusão de gênero dentro da comunicação deve estar intrínseca à ideia de rompimento do mundo que conhecemos, por mais paradoxal que possa parecer.
“É importante que a gente comece a pensar essa questão a partir do contemporâneo. E nosso contemporâneo está faturado. E estamos na contramão disso. Defendo a ideia que essa fatura vem de que nós —digo todos, como civilização, humanidade — determinamos um projeto do que era o civilizatório, do que era a humanidade, quem tinha o valor chamado. E aí há quem faz parte disso e quem não faz. E nós estamos em tempo de cobrar essa fatura. A cobrança dela deve ser radical, dizendo que o mundo como ele, carrega per si, a exclusão. Por isso, acho que devemos dizer que não queremos uma inclusão ao mundo, mas sim que a gente quer acabar com esse mundo. O que carrega esses dogmas. Pode parecer uma perspectiva niilista, mas é o contrário, é de buscar uma sobrevivência, uma predominância do que nós somos e de espaço”
Em seguida, Rosane começa a traçar um paralelo de como a construção da imagem na comunicação — com “imagem” leia-se o corpo pessoal de quem deve ou não fazê-la e obter repercussão — foi diretamente ligada à uma noção de mundo antiga, europeia, que está mudando gradativamente. Ainda que haja essa mudança e um maior protagonismo feminino dentro do processo comunicativo nas mais distintas esferas, a acadêmica ressalta que ainda, nós, como sociedade, estamos longe do ideal.
Neste instante, ela faz questão de pontuar a importância de se unificar as demandas de gênero e raça para a comunicação como um todo, dizendo que é impossível pensar em um sem atrelar ao outro.
“A noção de exclusão vem de algo bem antigo, nada moderno. A modernidade é o fruto do antigo, isso é algo que muitos desatrelam, mas é o intrínseco. Daí vem a ciência, para a sociedade, de quem deve ser o epicentro para a comunicação e de análise dela. Branca, masculinizada, europeia. Isso vem se alterando. Hoje é inegável que isso vem mudando. Hoje vemos mais mulheres brancas, negras, homens negros, participando da cadeia produtiva da comunicação. É um dado imperturbável. A medida é em grau que essa diversificação de raças e gênero se aproxima do ideal. E quando digo ideal, digo da nossa demografia. A gente é tudo, menos um país branco. E por isso é importante analisarmos e vermos como a importância de gênero deve se ligar a de raça. Se um é distinto do outro, a borda da desigualdade continua em determinado grau. Por isso nunca adiantou, e não adiantará, um movimento imponente feminino sem analisar uma preponderância negra, não-branca dentro dele. Até pelas mulheres também serem lidas socialmente como algo à margem do pensamento eurocêntrico e masculinizado, assim como os negros.”
Rosane também aproveitou e mostrou exemplos de situações que viveu, com o intuito de demonstrar como a diversidade de gênero deve estar atrelada não apenas ao numérico, mas principalmente à força das representações de números. A acadêmica deu destaque, em especial, a levantamentos de diversas áreas — tanto no setor de comunicação de grandes organizações quanto nos gerais — que mostravam um grande número de mulheres dentre o corpo de funcionários, mas com quase nenhuma delas atuante em cargos de liderança, gerência ou chefia.
Ela pontuou como hoje em dia, com a presença massiva das redes sociais nas nossas vidas, números tiveram mais quantidades que, o que ela chama de “impactos” — e que as empresas se aproveitam disso para mascarar uma falsa presença forte feminina.
“Teve um levantamento do Banco Real, de 2001 e 2002, que mostrava que a maioria do corpo profissional do banco era composta de mulheres. Chegaram a anunciar que era a mais inclusiva da história do banco. Eu e uma amiga trabalhamos analisando isso, quando pedimos para ver a planilha, vimos que eles brincavam de diversidade, a maioria delas estava a anos-luz de chegar a protagonismos ali, nenhuma em cargo de chefia ou comando. E isso conversa com muito do que essa tal “luta” nas empresas é muito baseada nos números e pouco na efetividade e impacto deles. A gente até pode dizer que há diversidade de corpo, mas equidade e pluralidade em formação empresarial e processo, comunicativo ou o que seja, não. Hoje em dia, com a era de redes, onde os números são o chamariz para a definição do que você é ou não é, isso se torna mais frequente e cômodo ainda para essas empresas. A venda da presença feminina real em troca do simbolismo numérico dela para autopromoção.”
Em dado instante da aula, a pesquisadora também correlacionou como um dos principais problemas da comunicação não ser plural em gênero é a falta de construção de vínculos nas “personagens” mulheres que são retratadas na mídia. A acadêmica ressalta como o tratamento feminino no processo noticiário é parte integral do problema para além da área da feitura em si.
“Como diria Muniz Sodré numa frase que também concordo: “comunicação é a construção de vínculos”. Um dos principais empecilhos para termos uma comunicação diversa em gênero é o impedimento da concretização desses vínculos. Sobretudo se analisarmos a condição que as mulheres são postas na mídia, no jornalismo. Tomamos como exemplo o feminicídio. Sempre se notícia que o marido ou namorado teve ‘ataque de fúria’ e matou a namorada ou esposa. Esse ataque como se fosse instintivo, animalesco, do nada. Se foca no ato para vender a notícia, mas não há uma preocupação em traçar a linha do tempo do que levou esse crime e do que ele realmente representa. Foi um crime por crime ou motivado pela ideia de posse? Isso não é exemplificado. Tais casos vêm sempre do tipo que mata, mas que antes bateu em outras, violentou. Quem mata uma mulher não mata num instante, em um impulso. A violência vem de um processo.”
Ela complementa:
“Não mostrar essa linha temporal a não só as mulheres, mas também a todos, homens, brancos, não-brancos, etc, é a falta de vínculo. Como você se identifica e enxerga na notícia a relevância se omite todo o processo que levou a aquilo e banaliza o ato? Nisso você incentiva uma descrença, uma banalização do ato de matar uma mulher. Não foi um impulso. Não foi uma morte no trânsito que você atropelou um desconhecido e matou. É uma pessoa que você conviveu, deliberadamente se enfureceu. A bateu, a matou. É um peso totalmente distinto que deve ser incentivado a perceber por quem recebe a notícia.”
Em seguida, Rosane ressalta como o preconceito à mulher na comunicação e sobretudo à presença feminina negra nela se dá, ao contrário do que muitos pensam, não focado no discurso totalmente explícito de aversão — ou “incel”, como muitos dizem hoje —, mas de sutilezas que acabam o corroborando, tanto dentro do lado ativo comunicativo na mídia e passivo.
“É importante a gente diferenciar responsabilidade de culpa. A culpa é o que resultou o direto de tudo, o responsável corrobora grau de responsabilidade que o culpado ocasionou. Na diversidade essa linha tênue é perigosa e tira a gente de um foco que deve ser bem analisado. O culpado, com o discurso de “mulher não tem que fazer isso, aquilo”, não é o principal disso. Ele é o impulso, claro, mas as sutilezas do que é responsável são o que perpetuam o que o culpado faz. Tanto nas mulheres ativas ou passivas no processo da comunicação. No racismo, sobretudo, isso é a mesma coisa. O cara do “morte aos pretos” é o agente, mas há o que nos pequenos pormenores do dia a dia colabora com essa morte, e esse é o foco de extermínio que temos que analisar principalmente. O que perpetua essa diferenciação? Que elementos no dia a dia eu posso diminuir o racismo? Por onde eu posso fazer um processo comunicativo plural e antirracista, em que não é só terem mulheres, terem mulheres com cargos de relevância e plurais entre si: latinas, não-brancas e pretas. Mais do que a voz que grita é preciso ver o que a ecoa e a faz reverberar para sempre.”
Já no fim da aula, antes das seções dedicadas a perguntas dos espectadores estudantes presenciais e online, a acadêmica fala de como construir um mundo comunicativo mais plural. E da solidez que todo seu processo exige, desde quem nele participa como também na firmeza ao acreditar em uma mudança.
“Quando se fala em diversidade, eu, ainda que paradoxalmente possa soar, penso em pactos para ajudar a concretizá-la. Pacto das universidades, dos professores, profissionais em torná-la mais inclusiva, antirracista e fundamental em termos a representação de gênero, isso, claro, a ideal. Ideal. Esse pacto exige não só um comprometimento, mas uma responsabilidade multidimensional, de estudantes até doutores. Isso supõe uma responsabilidade coletiva. Responsabilidade não é culpa. Mas nesse caso, diferente do que falei, a culpa é um resultado do que vocês, nós, seremos responsáveis. Vamos ajudar a tornar essa comunicação uma realidade, um ímpeto. Seremos justamente o processo que lá na frente firmará a voz. Mais que concretizar muitas das vezes, o importante é acreditar. Acreditar em mulheres profissionais, no que elas relatam, no que nós negros relatamos, no que podemos ensinar no quesito importância dentro da comunicação. Acreditando se tem um ímpeto para chegar ao resultado. Ele pode demorar a vir, ou vir em contra gotas, mas começá-lo já é o mais crucial de tudo. E é essa base da diversidade, acreditar que aquilo pode ser diferente.”
A aula ficou definitivamente marcada no curso como não sendo necessariamente de cunho restrito ao que se chama de “academicismo” para ajudar os alunos a refletirem sobre uma temática. Rosane também, além de tais tópicos, se sentiu a vontade para falar sobre diversos outros assuntos correlatos na parte de perguntas, ressaltando um ponto, que para ela, deve ser principal dentro do mote da diversidade de gênero: de saber criticar quem visa a propor e evitar concessões sob qualquer hipótese.
Neste instante, a pesquisadora usou como exemplo uma própria visão sua perante o governo Lula, a respeito da ausência da indicação de um nome negro e feminino ao cargo de ministro no Superior Tribunal Federal (STF) ou em grande impacto dentre ministérios.
“Abrir concessões jamais. Até mesmo e, principalmente, entre quem nos diz querer nos representar. Por isso considero o que o governo fez uma traição. De não colocar uma ministra mulher, negra, para estar no STF. E isso a gente tem que reinvindicar pois foi chegado e prometido um diálogo a essas demandas. E cobrança é fundamental. Do outro lado nem prometem, então daí não esperamos nada. Mas dentre os que prometem, sim. É importante a gente analisar até entre quem se propõe a fazer essa diversidade se ela efetivamente vai ser feita, como eu disse no caso do Banco Real. A gente tem que ter mulheres pretas ministras por aí, no STF e no governo. Na pasta do Planejamento, Saúde, Fazenda. Saber que até mesmo nossos supostos aliados devem ser vistos com grau de responsabilidade, como eu disse, não de culpa, é fundamental. E jamais abrir concessões das lutas em prol de sermos de ‘um lado só’. Presença feminina e preta é inegociável, imaleável. Qualquer a situação.”
E com um recado tão forte como este, de inegociabilidade, Rosane deixou claro como o incentivo à diversidade deve ser tratado: seja em gênero, como era o enfoque da aula, ou em qualquer outro grupo social, como um direito sem resquício de ressalva ou escanteio. Entre adversários diretos ou, principalmente, aliados. Um ensinamento que em duas horas foi equivalente à algo que em muitos anos determinadas pessoas não conseguiriam aprender com tamanha clareza.
A próxima aula (12) receberá o especialista, doutor e acadêmico Deivison Faustino, que conduzirá o encontro “Colonialismo Digital: Por uma crítica Hacker-Fanioniana”. Faustino abordará o colonialismo digital e sua relação com as ideias do filósofo Frantz Fanon, enfatizando uma abordagem crítica através do prisma hacker.
A aula analisará tal conceito de colonialismo no meio digital e suas ramificações na sociedade contemporânea, além de traçar um paralelo entre teorias de Frantz Fanon e suas implicações sociais atuais, tanto políticas e culturais, em diferentes partes do mundo. O encontro se iniciará, como de costume, às 13:30 da tarde no horário de Brasília, e será transmitido online pelo canal do YouTube da UFRJ.