Com um histórico bastante polêmico, as cotas completaram 10 anos a partir da promulgação da Lei Federal de 29 de agosto de 2012. É possível afirmar que a questão racial ainda está a reboque dos aspectos sociais desta medida. A maioria das vagas são reservadas para estudantes de escolas públicas. Entretanto, as pessoas negras, indígenas, quilombolas, por questões da formação econômica do Brasil, ainda estão na base da pirâmide. Por conta disso, foi um período de muita mudança na “cara” e no currículo das universidades públicas.
O Professor Marcelo Paixão, da Universidade de Austin, observa que a política de cotas não se trata de uma questão meramente financeira. Ele afirma que ler uma notícia escrita por uma jornalista negra ou ser atendido por um médico negro, atende a um marco civilizatório. O Professor Paixão, doutor em Sociologia pelo IUPERJ, economista, foi um grande colaborador para a política de cotas raciais na Universidade Federal do Rio de Janeiro, universidade onde lecionou durante 16 anos.

Professor Marcelo Paixão, professor da Universidade de Austin, Texas
Falando em jornalista negro, a Rede de Jornalistas Pretos (Rede JP), falou com o jornalista e empreendedor Renato Costa. Renato estudou pelo ProUni – Programa Universidade para Todos. O ProUni é uma política do Ministério da Educação, implementada a partir de 2004, que inclui alunos de baixa renda ao ensino superior privado. Costa graduou-se em Jornalismo, pela Universidade Veiga de Almeida, entre os anos de 2006 e 2010. “Havia exigência de boas notas e eu levava à risca.” responde o jornalista. Oriundo da Baixada Fluminense, o município de São João do Meriti, Renato Costa tem uma empresa, a agência Bamba, que atende todo o Brasil. “Pensei na Bamba porque jamais tive chefes negros e isso me incomodava.” O jornalista relembra que, durante a faculdade, buscava acessar todas as oportunidades de aprendizado extra-classe como laboratórios e bibliotecas.

O jornalista Renato Costa em uma palestra sobre Marketing Digital com Carlos Tufvesson, Coordenador Executivo da Secretaria Municipal de Diversidade Sexual
Renato comentou que as poucas vagas oferecidas na universidade pública e o horário pouco flexível com a necessidade de um jovem trabalhar, afastaram-no de cursar o ensino público superior. Ele acredita que não seria possível realizar o sonho de ser jornalista sem a política pública oferecida. “Acredito que a política do ProUni deva ser ampliada e ainda é bastante recente. É preciso mais incentivo à permanência no estudante durante a sua graduação.” O integrante da Rede de Jornalistas Pretos acredita que também é necessário oportunidades para que o jornalismo negro se amplie. “Temos a Rede JP, Geledés, Alma Preta, Notícia Preta, mas muitos destes veículos ainda não recebem o incentivo que merecem.” declara o jornalista. Segundo Renato, o jornalismo realizado por pessoas negras ainda não reflete o tamanho da sua população no Brasil.
A jornalista Claudia Kanoni já precisou se deslocar um pouco mais que Renato para realizar a sua graduação. Natural de Una, cidadezinha de 30 mil habitantes no interior da Bahia, a jovem passou para o curso de jornalismo da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba. Claudia informa que a universidade ainda está se aclimatando aos estudantes cotistas. Ela sente falta de um debate mais amplo sobre o assunto na UFPR. Seguindo a máxima da filósofa estadunidense Angela Davis – Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela – Kanoni fez parte do movimento estudantil para debater e cobrar políticas de permanência. “Bandejão, iniciação científica, pesquisa eram estratégias para garantir a permanência deste estudante na UFPR.” salienta a jornalista. Claudia Kanoni relata que sentiu a diferença de ser cotista na sua formatura. Os estudantes cotistas tinham um espaço para discursar para cerca de 400 pessoas. Apenas a jornalista baiana esteve no púlpito para falar de sua trajetória. Ela justifica que o silêncio destes graduades significa o peso do estigma que as cotas ainda trazem. Kanoni acrescenta que muitos estudantes ainda não estão informados sobre a dívida histórica que o Brasil tem com a população negra, indígena, quilombola e camponesa. A jornalista, como Renato Costa, advoga pela longevidade e aperfeiçoamento das cotas. “Não sou contra ações afirmativas nos anos iniciais e no ensino médio. Entretanto, está mais do que provado que cotas nas universidades é uma política de sucesso.” completa. No seu entendimento, a produção de narrativas não pode ser restrita a homens brancos heterossexuais. As mulheres negras, a população LGBTQIAPN+, os indígenas precisam ter suas vozes ouvidas.
O jornalista, pesquisador e professor Paulo Victor foi um beneficiário da política de cotas na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) entre os anos de 2005 e 2009. Ao contrário da sua conterrânea, Claudia Kaloni, as cotas eram bem vistas pela comunidade acadêmica. Ele não parou na graduação. Fez seu mestrado na Universidade Federal do Sergipe e o doutorado na Universidade Federal da Bahia. Está no seu segundo estágio de pós-doutoramento no Instituto de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal. O pesquisador debita a sua escolha pela carreira acadêmica às políticas de permanência durante a graduação como bolsas de pesquisa. Paulo Victor torce pela ampliação da política de cotas tanto para a pós-graduação como para o serviço público. Ele ressalta a importância de ter um corpo docente que corresponda à diversidade da população brasileira. “Necessitamos de ver mais professores negros nas universidades.” Segundo dados do Censo de Ensino Superior, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), o percentual de professores negros nas universidades federais aumentou 15,8%, desde 2014, mas ainda está longe de representar a proporção da população negra brasileira. O jornalista observa que a comunicação brasileira aprendeu com a política de cotas.Veículos hegemônicos como Folha de São Paulo, O Globo torciam o nariz para as ações afirmativas na universidade. “As cotas acabaram provando que a igualdade de oportunidades beneficiou o país.” comprova.
Cotas pelo mundo e a mudança do currículo universitário
Retomando a polêmica da política de cotas, no início, foi bastante rechaçada por uma parte da classe intelectual do país. Havia um medo de que os alunos não conseguissem acompanhar o desempenho das instituições. O medo não se comprovou na prática. Estudantes cotistas não diferem no desempenho dos netos dos doutores formados pelas universidades públicas brasileiras. É necessário dizer que houve iniciativas que antecederam à Lei Federal das Cotas, como a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade de Brasília, que já têm mais de 20 anos da política. Relembrando a fala do Professor Marcelo Paixão sobre esta política não significar apenas a igualdade de oportunidades, num dos países mais desiguais do mundo, mas ser um marco civilizatório. A diversidade trazida pelos estudantes indígenas, quilombolas e negros trouxe a exigência de um novo currículo. Assim, a universidade está se debruçando sobre temas novos, tecnologias inovadoras trazidas por estes novos frequentadores dos espaços acadêmicos. Recomendamos que assistam a conversa da editora Marcelle Chagas com a jornalista Bianca Santana sobre o combate ao racismo como defesa da democracia.
As políticas afirmativas enfrentam bastante obstáculos. Os países onde a escravidão negra foi a base da sociedade, como na América Latina, ainda oferecem poucos dados sobre as minorias étnico-raciais. Existe a filosofia de encarar a miscigenação como algo festivo. Na realidade a tensão entre a população negra, indígena sempre aconteceu desde que os europeus pisaram por aqui. As obras dos intelectuais como o brasileiro Clóvis Moura e o peruano Aníbal Quijano traçam este panorama sobre o sistema colonial. Políticas afirmativas para oportunizar minorias raciais a partir da educação vêm sendo implementadas no Brasil e na Colômbia desde os anos 90 de maneira paulatina.
Os Estados Unidos possuem uma experiência maior e mais ampla com ações afirmativas desde meados dos anos 60. É importante lembrar que os principais líderes, que lutavam por esta política de igualdade de chances entre brancos e negros, foram brutalmente assassinados: Pastor Martin Luther King Jr e Malcolm X. Daqui a algumas semanas o fator raça pode ser banido como política de admissão nas Universidades da Carolina do Norte e de Harvard. A Suprema Corte estadunidense ouvirá ambos os casos para tomar a decisão. Há um grande percentual da população branca que discorda desta política de igualdade para minorias étnico-raciais. Muitos consideram que os prejuízos que a escravidão e o genocídio da população não têm relação com os péssimos indicadores que a população negra enfrenta. Nos Estados Unidos, apesar da população negra ser minoria (12%), ela é a maioria encarcerada.
Ainda que a política de cotas tenha realizado mudanças sem precedentes nas universidades brasileiras, as redações ainda não sentiram este impacto. Em novembro do ano passado, foi lançado o Perfil Racial da Imprensa Brasileira. Uma pesquisa da Jornalistas & Cia, Rede JP- Jornalistas Pretos, ABI, AJOR, ANJ, outras agências de comunicação e universidades. O resultado foi que a imprensa é branca e masculina. 63% homens, 36,6% mulheres, 20,10% de negros e 0,2% de indígenas. É importante salientar que entre a base de 49 jornalistas declarados negros e indígenas, na pesquisa, quase 79% não puderam utilizar as cotas em suas primeiras graduações. As ponderações dos ex-cotistas que defendem a manutenção da política de cotas se prova absolutamente necessária.