Os arquivos públicos são verdadeiros guardiões da história, permitindo a reconstrução de memórias individuais e coletivas essenciais para a identidade de um povo. O Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP), com mais de 130 anos de história, é um dos principais acervos do país, preservando cerca de 25 milhões de documentos textuais, além de materiais iconográficos e cartográficos.
Entre suas coleções mais relevantes, destaca-se a exposição “Presença Negra no Arquivo”, que evidencia a luta da população negra no Brasil, com registros de fugas, alforrias, quilombos e a resistência cotidiana pela liberdade e cidadania.
Luiz Gama: a imprensa como arma na luta pela liberdade
Uma das personalidades mais destacadas na exposição é Luiz Gama (1830-1882), advogado abolicionista e jornalista autodidata, cuja trajetória é fundamental para entender a relação entre imprensa e a luta antirracista no Brasil. Nascido na Bahia, Gama foi vendido como escravo aos 10 anos, conquistou sua liberdade e se tornou uma das vozes mais influentes do século XIX na defesa dos direitos da população negra.
Seu legado está amplamente documentado no APESP, que guarda uma vasta coleção de seus escritos jornalísticos, recentemente reconhecidos pela UNESCO como parte do programa Memória do Mundo. O acervo conta com 232 textos publicados em 12 jornais, como Correio Paulistano, A Província de São Paulo e O Polichinello, onde Gama atuou como editor. A imprensa foi sua principal ferramenta de combate à escravidão, denunciando injustiças, articulando juridicamente a libertação de centenas de escravizados e promovendo o debate público sobre igualdade racial.
Explica Diego Ramos, servidor do núcleo de difusão e ação educativa do Arquivo Público.
“A escrita de Luiz Gama demonstra como a imprensa negra foi essencial para a construção de uma identidade coletiva e para a luta por direitos. Ele utilizava os jornais não só para denunciar a escravidão, mas para educar juridicamente a população negra sobre seus direitos.”

A exposição “Presença Negra no Arquivo: Luiz Gama, articulador da liberdade” apresenta manuscritos de Gama, como o livro “Matrículas de Africanos Emancipados (1864)”, e evidencia sua influência na imprensa da época, onde suas crônicas e artigos expunham as contradições do regime escravocrata e pressionavam o sistema judiciário a reconhecer a liberdade dos negros.
A imprensa negra pós-abolição e a continuidade da luta
A influência de Luiz Gama na imprensa reverberou nas décadas seguintes, inspirando a criação de jornais negros no período pós-abolição, que passaram a registrar e divulgar a resistência e a organização da população negra. Jornais como A Voz da Raça e O Clarim d’Alvorada assumiram o papel de informar e mobilizar as comunidades negras na luta por direitos, ampliando a discussão sobre cidadania plena.
Thiago Nicodemo, diretor do APESP, destaca:
“A imprensa negra surgiu como uma ferramenta de resistência e articulação política da população negra. A exemplo de Luiz Gama, esses veículos desempenharam um papel crucial na construção da identidade negra no Brasil, registrando a cultura, a luta por moradia, trabalho e a resistência ao racismo estrutural.”


O reconhecimento da UNESCO fortalece a importância do arquivo de Luiz Gama e reafirma a necessidade de preservar e divulgar a memória negra no Brasil. Esse acervo, que já é uma das maiores coleções sobre o abolicionista no país, continua a servir como fonte para novas pesquisas e para inspirar futuras gerações a compreender o papel da imprensa na construção da cidadania e na luta por justiça social.
Preservação da memória negra como justiça histórica

A certificação da UNESCO ao acervo de Luiz Gama como patrimônio da humanidade reafirma a relevância da imprensa como espaço de luta e resistência da população negra. A preservação desses documentos permite que as novas gerações conheçam e valorizem a história a partir da perspectiva dos protagonistas negros, combatendo a invisibilidade de suas contribuições.
A equipe do APESP, com o apoio de pesquisadores como Bruno Rodrigues de Lima, do Instituto Max Planck, fundador da Sociedade Luiz Gama e organizador das obras completas do abolicionista. Foi graças ao trabalho de organização de Lima que o projeto nasceu e pôde se candidatar ao programa da UNESCO. Esse reconhecimento não apenas destaca a importância de Luiz Gama, mas também representa um passo significativo para a recém-criada exposição “Presença Negra no Arquivo: Luiz Gama, articulador da liberdade (1830-1882)”.


Conclui Guilherme Vieira, diretor técnico do Centro de Difusão e Apoio à Pesquisa do APESP.
“Preservar a memória documental é garantir que a história seja contada por quem a viveu. Os documentos de Luiz Gama provam que o conhecimento e a palavra escrita foram suas maiores armas contra a opressão.”

A exposição
A exposição “Presença Negra no Arquivo: Luiz Gama, articulador da liberdade (1830-1882)” está aberta ao público no térreo do Arquivo Público do Estado de São Paulo, localizado na Rua Voluntários da Pátria, 596, Santana (próximo à estação Portuguesa-Tietê do Metrô). O horário de funcionamento é de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h.