Rede Jornalistas Pretos inaugura mini série de reportagens com entrevistas que refletem o impacto de políticas de saúde mental para a população negra
No último dia 10 de outubro, foi celebrado o Dia da Saúde Mental. A data, criada em 1992 pela iniciativa da Federação Mundial para a Saúde Mental, a World Federation for Mental Health, é uma conscientização da defesa da saúde mental global contra o estigma social e perante à problemas civis das mais diversas ordens que impactam as pessoas.
No Brasil, iniciativas são sempre feitas já há algum tempo. Recentemente, foi adotada a campanha do Setembro Amarelo — de prevenção ao suicídio e conscientizador da procura de terapia e atenção psicossocial. Mas ainda assim, apesar de grande incipiência em torno da temática, a abordagem da saúde mental é complexa e necessita dos cuidados e angulações que sua seriedade propriamente implanta.
Nas populações negras, a demanda é ainda maior. Já que junto ao estresse, pressão social, emocional, entre outras demandas, o passado escravagista e o presente racista do Brasil continuam se desdobrando em vulnerabilização, marginalização e agressões constantes à indivíduos negros. Dos mais velhos até sobretudo, os mais novos.
De acordo com reportagem da Agência Brasil em 2022, analisando dados de pequena amostra de pacientes negros atendidos por profissionais de uma unidade de saúde, dentre 220 prontuários dos autodeclarados pretos e pardos, 60 deles (27%) indicavam episódios de violência infantil. As violências identificadas eram de enorme gravidade: abuso psicológico (54%), violência física (23%), abuso sexual (14%) e maus-tratos em geral (9%). Ao todo, 4% das crianças também acabaram como alvo de atos racistas em escolas.
Isso, claro, contabilizando os mais novos, onde a procura por atendimento e suporte psicológico vem aumentando nos últimos anos. De acordo com o gráfico abaixo, anexado em pesquisa recente do Instituto Cactus-Atlas de Saúde do ano passado, os mais novos e integrantes de grupos minorizados possuem distinção pequena e — até somados são maiores — em relação à outros indivíduos.
Ainda assim, o levantamento revela que a taxa da efetiva procura é pequena. Apenas uma média de 5 à 6% fazem acompanhamento terapêutico constante. Diversas são as causas: do financeiro até a pouca difusão da importância real do cuidado da saúde mental pelos meios de comunicação.
Como forma de ajudar nesse debate, a Rede Jornalistas Pretos pela Comunicação inicia aqui duas reportagens nos próximos dias em conscientização do tema. Intitulada “Saúde Mental: Também Uma Questão de Cor”, a série abordará dois prismas: do psicólogo analisando as distinções e desafios da sua área e impacto do atendimento psicossocial na população negra; e por fim, a visão de profissionais de outras áreas, em especial à comunicação, de constante descrença em seu trabalho ocasionada pelos efeitos psicológicos do racismo, como a “síndrome do impostor”.
Respectivamente, elas ajudarão a entender os impactos profissionais intra e extra-psicólogos e também a distinção e particularidades de pacientes negros nesta equação, sobretudo profissionalmente na área da comunicação. Para iniciar a sequência de entrevistas, a Rede JP conversou com a psicóloga e especialista em atendimento psicossocial Laura Paulo, que além de falar sobre seu início na área em experiência como profissional preta, ressaltou a parcimônia e cuidado específico nos quais o tópico deve ser posto à mesa quando racializados procuram terapia.
Experiências e observações próprias
Laura começou a entrevista ressaltando o desejo de cursar psicologia. Em particular, a terapeuta e profissional, revelou que já em poucos anos de vida tinha plena consciência de viver em uma área cuja “ajuda às pessoas” era o mote. Pela capacidade, apontada por amigos, de saber ouvir, o caminho era mais que claro. “Desde a infância eu queria ajudar as pessoas, fazer algo diferente de alguma forma, mas nunca soube como fazer por ser uma pessoa muito introvertida. Foi na psicologia que encontrei as ‘ferramentas’ utilizando a habilidade que meus amigos falavam que eu tinha que era escutar as pessoas, o que vejo ser essencial e me interessei muito nas diversas áreas possíveis de atuação.”, complementa.
Em seguida, ao refletir seu início na vida acadêmica logo pontuou desafios. Um deles, claro era a representatividade e falta de referenciais negros na psicologia, algo que Laura gradativamente foi aprendendo por conta própria.
O maior desafio que tive nesse começo foi efetivamente me encontrar na área da psicologia, porque, academicamente, a psicologia ainda é muito eurocêntrica. Em um momento, entre o quinto e sexto período, eu perdi totalmente o interesse, mas precisava continuar por ser bolsista e não queria enfrentar toda a burocracia de trocar de curso. Justamente por essa não identificação. Tudo mudou quando conheci a Análise Institucional e comecei a ter contato com a psicologia social crítica, lendo de Frantz Fanon à Ailton Krenak, foi ali que eu pensei que tinha espaço para mim na psicologia.
Ela complementa:
Outro aspecto que hoje, depois de formada, eu percebo que me atravessava, era ver poucas pessoas negras no mesmo ambiente que eu, entre discentes e docentes. Em uma turma de quase 40 discentes, acho que nem 10 deles eram pessoas negras, nem metade de todas as professoras e professores que tive eram negros. Como em todas as instituições que estudei durante a minha vida eram privadas, acabou que em algum momento eu tinha parado de reparar em quantas pessoas negras estavam ali e em quais posições elas estavam porque eu vi muitas pessoas negras trabalhando nos serviços gerais e poucas nas salas de aula. Foi na graduação que aprendi que para gente é tudo muito mais difícil do que pra branquitude que podia pagar 3 mil reais de mensalidade e comprar todos os livros que queria.
Laura, analisando o mercado da psicologia, em uma visão “de profissional para cliente”, refletiu como a ‘indústria psicossocial’ se faz presente hoje em dia. A profissional pontuou como as testagens psicólogas estão mais densas e pouco refletoras nas matérias das universidades, o que pode tornar alunos um tanto perdidos na saída do academicismo para o entorno do profissionalismo.
Atualmente vejo que o mercado de trabalho no geral está cada vez mais rigoroso, o que não é diferente com a psicologia. Ele está voltado para as avaliações e testagens psicológicas por precisar atender a demanda de psicodiagnósticos, assunto que cabe em outra discussão por ser muito extenso, mas ao meu ver a graduação na teoria e na prática ainda não está acompanhando o mercado, então quando a profissional se forma precisa ir buscar o conhecimento em outro lugar para ter mais facilidade em se inserir no mercado de trabalho, ao mesmo tempo que precisa da experiência de trabalho que lhe é negada por não ter um conhecimento específico em determinada área.
Ela complementa:
O melhor meio de trabalho ainda é a clínica particular, mas é uma área elitizada e o início é difícil. Nem todos os profissionais não têm o conhecimento (ou o interesse) de pensar em uma clínica que vai além do consultório com uma sessão de 50 minutos e que tudo que acontece na sociedade fica da porta pra fora ou da tela pra fora visto que o atendimento online cresceu muito. Não há o preparo deles à isso. Alguns profissionais não têm o interesse de atuar na clínica particular e parece que o mercado não quer abrir outras opções de atuação para essas pessoas, sendo a psicologia uma área que pode trabalhar em muitos lugares, pode ser ainda pelo preconceito que existe na sociedade sobre a profissão.
Em seguida, Laura não apenas saúda as mudanças no corpo profissional como elogia à incipiência de Conselhos da área psicológica em incentivar a mudança e diversidade de profissionais. Tanto racialmente quanto em gênero. “E quando olhamos para quem está no mercado de trabalho a maioria são pessoas brancas, dentro do padrão da cisheteronormatividade porque estamos inserido nesse sistema, um cenário que aos poucos está mudando e o Conselho Federal de Psicologia (CFP) junto com os Conselhos Regionais estão enxergando essa mudança e dando espaço para a diversidade, seja dentro dos próprios conselhos ou em eventos que são organizados por eles.”, frisa a psicóloga.
Da psicóloga para a analista dos pacientes: a importância da dualidade
Saindo do ponto de vista da psicologia e partindo um pouco para a população atendida, majoritariamente negra ou voltada à pessoas racializadas que muitas das vezes têm o acesso à tratamento da saúde mental negligenciado, a terapeuta analisou os principais desafios que a população negra enfrenta hoje em relação à disponibilidade de poder iniciar sessões de terapia e fazer, efetivamente, tratamento psicológico. Laura foi categórica em apontar que o começo é sempre ‘desincentivado’ e o ponto sensível do tópico.
Acho que a maior dificuldade ainda é a porta de entrada para essa população, quem não tem condições financeiras de pagar pela terapia em um consultório particular recorre ao SUS que está totalmente sobrecarregado por ter poucos profissionais atendendo e com a demanda muito alta, o que impacta negativamente na qualidade do atendimento que já é muito difícil de acessar. Lugares que atendem a preço social também estão ficando sobrecarregados, têm uma longa fila de espera onde a pessoa não sabe quando vai conseguir o atendimento. Através dos planos de saúde também é difícil, sabendo que nem todos os planos cobrem a terapia e por outro lado os profissionais ganham pouco e atendem muita gente.
Em seguida, outros motivos foram dados. A psicóloga aproveitou para relatar uma experiência acadêmica que reflete no desconhecimento de muitos profissionais em lidar com pacientes negros e traumas oriundos de experiências próprias de grupos racializados.
Outro ponto é o receio de sofrer mais uma violência durante a psicoterapia, onde é um processo em que a pessoa fala de temas muito sensíveis para si e deve ser um espaço seguro de acolhimento, não foram raras as vezes que pessoas negras desistiram da terapia por uma postura antiética do profissional. O CFP lançou normativas e referências técnicas sobre questões étnico-raciais para orientar a conduta profissional além do código de ética da psicologia, mas algo que sinto é que falta na graduação falar sobre esses temas sem que seja apenas por 40 minutos em uma aula. Trazer uma vivência. Na faculdade eu fiz parte de uma equipe de pesquisa-intervenção que realizava oficinas com os discentes e falamos muito sobre relações étnico-raciais e em uma dessas oficinas uma pessoa falou que não saberia fazer uma intervenção em uma demanda relacionada com o racismo. E como citei anteriormente, o curso ainda é muito eurocêntrico e elitista, a grande maioria são pessoas brancas, o que afasta ainda mais que uma pessoa racializada busque atendimento.
Quando perguntada sobre que áreas ela percebe que as populações racializados mais se sentem fragilizadas, Laura revelou que o “acúmulo” de várias forma o perfil profissional, ao menos sob sua análise, de pacientes negros. “Eu percebo que todas essas áreas estão ligadas sob o olhar da interseccionalidade, a estrutura da sociedade é racista, então é comum que queixas sobre a vida profissional e pessoal cheguem durante a terapia (podem chegar juntas), o que cabe a nós profissionais é entender de qual lugar vem essa demanda, analisar com um olhar social, crítico e político e auxiliar a pessoa da forma que lhe for mais potente porque a psicologia, pelo menos na clínica que acredito, não tem algo pronto do que fazer porque devemos respeitar os movimentos e potências de cada clínica e ‘clinicando’, que chegam e como esse sofrimento impacta cada um.”, ressalta.
O impacto futuro de uma sociedade atônita mentalmente e o papel da comunicação
Sobre o nível de desordem mental, em forma geral, da população hoje, Laura conclui que as pessoas nunca estiveram tão abaladas emocionalmente. Em adição, ao ser questionada, sobre se a pandemia foi determinante neste impacto e se ela perdurará por anos, foi categórica.
Com certeza o impacto da pandemia vai continuar nos próximos anos, mas acho que é preciso ter cuidado com alguns discursos do tipo “fazer terapia resolve tudo”, a psicologia não deve ser colocada em uma posição de poder ou de “grande salvadora”. Com certeza algumas questões cabem à psicologia e devem ser acolhidas por ela, mas devemos olhar bem para as demandas, não apenas para a pessoa que chega ali e sim fazer uma análise social, de território, como é a vida dessa pessoa. Por exemplo, uma pessoa pode chegar por causa de um encaminhamento por ter muitas crises de ansiedade, mas essas crises podem estar acontecendo por ela estar desempregada há muito tempo e é uma das provedoras da família, essa não é uma demanda que apenas a psicologia pode atender. O que pode se colocar como um transtorno de déficit de atenção na realidade pode ser fome porque a pessoa está em uma situação de insegurança alimentar. Nem sempre a pessoa precisa de terapia, ela precisa que as políticas públicas a contemplem, o Estado a enxergue como cidadã que deve ter seus direitos respeitados.
Quando perguntada sobre como ela compreende que a comunicação deve exercer papel de difusão à conquista da saúde mental e sobretudo da visibilidade do profissional negro na psicologia e do atendimento às demandas de pessoas racializadas, a psicóloga e especialista revelou a importância de se ter amplitude antirracista quando debruçada no assunto em todo o tempo, não apenas para pautas eventuais e datas específicas.
“O mais importante acho que é olhar para o profissional, ouvir o que ele tem a dizer sem que seja apenas em novembro por causa do mês da consciência negra porque ele continua existindo em todos os outros meses do ano, assim como a população negra. Acho que o primeiro passo é falar sobre, a mídia pode ser uma ótima aliada para a democratização do acesso a um serviço de qualidade para os usuários, de chegar até as pessoas que estão precisando da psicologia, que ajude a romper com os estereótipos a respeito da saúde mental e dos estereótipos que existem até hoje sobre a saúde da população negra que tem também as próprias demandas.”, finaliza Laura.
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