Como última aula da iniciativa, apresentada desde março, a especialista e comunicóloga trouxe relatos, convidado e compartilhou suas experiências trabalhando e como uma produtora de conteúdo indígena.
“Manter a tutela do conhecimento própria a eles e dar visibilidade a isto, isto é o sinônimo de representação indígena”. Com tal frase, Valéria Lapa sumarizou bastante o cerne da reunião comandada por ela nesta sexta-feira (12), dentro do curso de diversidade e inclusão na comunicação e jornalismo, organizado pela Rede JP em parceria com a UFRJ desde março. A iniciativa, que chegou ao fim com o encontro de Lapa, não poderia ter encerrado de forma mais reflexiva, potente e esclarecedora aos presentes, que puderam acompanhá-la via canal do YouTube da Extensão UFRJ.
Tentando sumarizar distintos pontos, Lapa trouxe como tema principal o papel da mídia e das agências de notícias no tratamento e luta dos povos originários. Com um mote tão importante como este, o encontro e, sobretudo, a experiência da palestrante em imersão na área deveria ser latente. E é. Ela, integrante dos coletivos Rede Narrativas, CrossRoads Collective, da agência MUDA, além de conselheira da Remaf (Rede de Mulheres das Águas e das Florestas) e colaboradora do projeto Bioma: Comunicação Ancestral, demonstrou toda sua expertise e propriedade ao tocar no assunto. Não pelo seu vasto currículo somente, mas também vivencialmente, por ser indígena.
Traçando um panorama multidimensional, o encontro tentou compreender quais os pontos de intersecção das grandes mídias, agências de notícias e na própria visão social perante lutas e vivências dos povos originários. Eles, totalmente entrelaçados, ajudam a nos fazer entender as bases do silenciamento da população indígena, a que custo ela se sustenta e a quem lhe interessa o mesmo dentro de distintos veículos. Para além de todas as explicações em bases teóricas sustentadas, Lapa se usou de relatos vivenciais a respeito de coberturas e até de retratos — chancelados por meandros midiáticos ou não — para demonstrar como muitas temáticas e como realmente as demandas das populações ou não são chegadas ou quando chegam à grande mídia são distorcidas ou estereotipadas.
Entre os relatos, houve um especial, do convidado Cameron Cross — parceiro de trabalho de Valéria que, como jornalista e comunicólogo, relatou um pouco de sua experiência tendo contato com populações originárias. Um dos pontos altos da aula, a fala de Cross foi ao encontro de um depoimento sensível, emotivo, mas de intensa coragem e aprendizado. Não pela minuciosidade de detalhes com que falou, apenas, mas pelo lado humano, dele como homem branco aprender o “verdadeiro sentido”, segundo suas próprias palavras, do que é diversidade ao trabalhar cobrindo o dia a dia dos povos originários.
No início da aula, Valéria traçou um conceito generalista, global, do que é diversidade. De forma ampla, exemplificou dados sobre homens, mulheres e todos os tipos de indivíduos, sob diversas ordens — além de gênero, suas identificações raciais, orientações sexuais e até localizações populacionais —, e de como eles juntos formam simultaneamente uma unidade em serem diversos. Usando tal entrecho como gancho, Lapa começou a diferenciar como se faz presente o que é a diversidade e sua distinção a outros termos comumente confundidos, como a inclusão e a equidade.
Em especial, frisando a inclusão, de tornar pessoas distintas de um grupo socialmente imposto, Lapa pontuou como na comunicação ela, hoje, se dá por distintas formas e atua em conjunto com a diversidade, que visa a incorporar não só nos meios em que a notícia e a reportagem é difundida — isto falando, claro, do jornalismo — como na difusão de narrativas próprias, geralmente não cobertas na chamada “mídia tradicional”. Discorrendo ainda sobre a temática, a palestrante frisa como a noção de diversidade incorpora outros seis pontos, todos intrínsecos ao funcionamento intra e extra-empresarial e organizacional para agências noticiosas e comunicativas.
São elas: de criatividade e inovação, melhor tomada de decisão, atratividade de talentos, adaptação à mudança, imagem da marca e saúde mental. Sobre em especial isso, Valéria aproveitou e revelou um pouco de como ocorreu sua mudança para a especialidade jornalística ligada a retratar e dar luz à luta de povos originários.
“Sempre correlaciono que o jornalismo, e a comunicação, e nós como comunicólogos temos que analisar e sermos uma extensão do lado humano. Minha migração e minha solidificação, assim dizendo, na comunicação e de um jornalismo voltado ao social veio não só pela minha identificação, como mulher indígena, mas também de perceber que diversidade eu sentia que não via onde eu estava e queria mudar. […] Daí mudei do jornalismo corporativo ao voltado ao social. E sobre esta questão, digo que diversificar é não só dar luz à essas pautas, estas pessoas, mas principalmente permitir-se dar isto. […] E é nisso que entra a questão de como a diversidade ocorre. Não dela em si, mas em que meio e de que forma as organizações midiáticas a deixam ocorrer. “
Em seguida, Lapa aproveitou para esmerilhar-se mais ao tema da aula: a representação dos povos originários e sua relação na performatividade diversificada. Adentrando o assunto, trouxe dados correlacionados à identificação de indígenas no Brasil. Associando-os a números de outros grupos minorizados, a especialista iniciou um paralelismo a priori sutil, mas que foi se desenhando como extremamente necessário: o de apresentação ao conceito das agências de notícias.
Usando como base artigo redigido por Pedro Aguiar e publicado pela Intercom, a jornalista traçou um paralelo de como funciona o conceito por trás das mesmas e de que forma, desde seu primórdio, elas funcionam como sustentadoras de interesses próprios de quem patrocinam — financeira e ideologicamente — as organizações noticiosas e não do povo, e nisto inclusa a população indígena, como na visão de Lapa deveria ser.
No texto, e explicação da comunicóloga, é demonstrado o surgimento das agências por meio das comunicações telegráficas no século 19. Em específico, a pesquisadora destacou um trecho como a venda de notícias dependia da época diretamente dos acessantes ao meio, estritamente caro e exclusivo à época.
“Uma das primeiras redes sociotécnicas constituídas em escala mundial foi a dos cabos telegráficos (terrestres e submarinos), na segunda metade do século XIX, e as agências de notícias – junto aos bancos, governos e forças armadas – estiveram entre os principais usuários dessa infraestrutura de telecomunicação. Por ela, grupos sociais distintos e apartados por distâncias geográficas que os transportes ainda levavam semanas ou meses para cobrir, passaram a interagir em intervalos de tempo desprezíveis – o primeiro “tempo real”, em efeitos práticos, na história da comunicação a distância.
[…] O alto custo das comunicações telegráficas restringiu seu uso ao Estado e a um seleto grupo de organizações que dispunham de recursos para pagar as tarifas cobradas das operadoras – como a Western Telegraph Company norte-americana (atual Western Union), a Electric Telegraph Company britânica (atual British Telecom), a Atlantic Telegraph Company anglo-americana e a Siemens alemã. Os jornais, de territórios de circulação restrita por causa da materialidade do meio impresso, dependente do deslocamento físico tinham público limitado que, por sua vez condicionava a receita publicitária ao alcance espacial de seu leitorado – a praça, no jargão do jornalismo.
Esse foi – e ainda é – o modelo de negócios das primeiras e maiores agências de notícias, surgidas na Europa Ocidental e nos Estados Unidos entre 1835 e 1851: Associated Press (EUA), Reuters (Inglaterra) e AFP (França). Com a eficácia desse modelo, rapidamente as agências de notícias se tornaram fontes privilegiadas da imprensa e das outras mídias que surgiram depois) para cobrir notícias que ocorriam além de seus territórios imediatos de alcance, particularmente as notícias internacionais. Logo, eram responsáveis por gordas frações das notícias publicadas por jornais e emissoras do mundo, especialmente fora das metrópoles e nos países mais pobres, ou sob dominação imperial/colonial.”
Nesta citação, concomitantemente, Lapa frisou como a veiculação do que era difundido nas agências vinha diretamente da chancela das “elites comunicativas”. Por estabelecerem um poderio, cultivado até por avanço tecnológico propiciado financeiramente por exploração ocidental sob países colonizados e povos originários, as imprensas nacionais individuais ficaram reféns destas agências noticiosas internacionais, maiores, que nem sempre — ou nunca — estavam dispostas a cobrir conflitos ou dilemas que não conversassem com as demandas de seus países ou da elite financeira e social implantada em seus modelos de negócios.
Analisando o artigo junto a dados da distribuição das agências noticiosas mundo afora, Valéria complementa:
“Avaliando, as agências de notícias, elas não nascem apenas para gerar notícias, nascem para manter, fazer uma manutenção dos espaços de poder que já haviam naquela época. Se olharmos, não mudou nada até hoje. Sedimentando-se por décadas estas empresas cresceram a ponto de se tornarem gigantes da comunicação internacional. Olhando a distribuição das agência de notícias ao redor do mundo, as desigualdades de narrativas e representatividades ficam ainda mais claras. São 823 agências na Europa Ocidental; 662 na Ásia incluindo o Oriente Médio; 427 na América do Norte. Na América Latina, onde nós estamos é menos da metade do que aonde tá a Europa Ocidental, com 378. […]. Então as agências de Notícias globais, elas estão distribuídas dessa forma e obviamente a localidade, também interfere no viés que as notícias chegam para gente. Quanto mais ocidentalizado, menos é representado grupos para além do branco, rico e claro, o chamado ‘civilizado’. Isso conversa totalmente com a referência lá fora, replicada no jornalismo e noticiário nacional do que é válido a ser notícia.”
Exemplificando agências de notícia e grupos corporativos de grande repercussão jornalística no país, a pesquisadora dá exemplos de como tais entidades comunicativas enxergam e dão visibilidade a respeito das lutas de grupos minorizados. Em especial, de povos originários. Como forma de provar seu ponto, Valéria mostra a cobertura de povos e movimentos indígenas a respeito da lei do marco temporal — ainda em trâmite de julgamento, diga-se de passagem — em vídeos capturados de de três veículos distintos. Um da televisão aberta: o SBT; outro na TV fechada, representada pela CNN Brasil; e o terceiro nas redes, através da Mídia Ninja.
Por eles, a pesquisadora e especialista pontuou como não apenas a forma da notícia como até a edição visual ajuda a criar narrativas próprias aos olhos do espectador. Enquanto no SBT eram noticiadas manifestações com imagens ritualísticas que nada acrescentavam na notícia, na CNN a cobertura ganhou uma angulação completa, segundo a palestrante, colocando não só falas das pessoas indígenas como especialistas ligados à área acadêmica, denotando seriedade sobre o assunto.
Um outro diferencial para Valéria se deu na Mídia Ninja, que além de adaptar a forma de “noticiar” para o linguajar das redes, escolheu como destaque visual — em vídeo, sem cortes secos — a fala de uma indígena reinvindicando atenção sobre o assunto. Sobre a construção destas diferenciações e impactos, ela ressaltou:
“Pontuando essas três reportagens e representações noticiosas, vemos claramente como pela maneira de noticiar dos veículos, alguns propriamente sucursais de agências e outros grandes nomes da comunicação, como é a construção dessa hegemonia e solidificação da falta de diversidade e inclusão da luta indígena. No SBT há uma completa distorção, ridicularização até, eles explicam a notícia de forma breve, mas ficam apenas na imagem do momento ritualístico, dança, etc, indígena. Que é muito importante faz parte da vida espiritual, mas ainda assim não se limita o que é a população indígena. Ela não se limita à dança ou cântico. São peesoas racionais que podem falar em nome delas em vez de um apresentador no estúdio ler um TP. A Mídia Ninja já tem como modelo editorial colocar as pessoas indígenas na fala. De forma seca e direta. Sem rodeios. Poderia ter um complemento ali, mas nas redes eles cumprem a proposta do imediatismo. A terceira, da CNN, matéria que obviamente é mais longa, é mais produzida, tem algo que eu valorizo muito e que devemos, que é ver a pessoa indígena como alguém que também é acadêmica que também é liderança intelectual. Trouxe o debate a um nível de credibilidade e seriedade. Essas semióticas são sutis, mas ajudam muito a formar na cabeça das pessoas o que é o indígena. E muito dessa maneira é importada das agências de lá de fora e das próprias nacionais. E há uma distinção. Sutil, mas que é abissal para nossa luta.”
Perguntada de imediato sobre qual caminho para aprimorarmos a discussão no debate público, Valéria foi direta, questionando — trazendo seu ponto aos espectadores — o motivo de tantas poucas pessoas indígenas na produção comunicativa em larga repercussão.
“Então se vocês perceberam, [na reportagem da CNN] apareceram os indígenas com o lettering aparecendo seus cargos as suas funções e é sobre isso, né? A gente precisa cada vez mais ter fontes qualificadas. Nós não temos na linha de frente, na frente da câmera ou atrás delas profissionais indígenas né? A gente não tem uma figura pública conhecida ou de grande impacto que esteja num canal de grande porte. Fico pensando nisso e é por aí que tem de se iniciar uma certa mudança na forma como se noticia e somos vistos. Têm pessoas que eu admiro muito, mas infelizmente não têm a visibilidade que um Bonner da vida tem. Não temos âncoras, pauteiros, redatores nestes lugares. Tendo um impacto no jornalismo, como figura de repercussão, para além, claro, das iniciativas extra-mídia tradicional, é um passo que daria um caminho a isto no futuro. E que sonho ver. Mas para isso é continuar investindo, reconhecendo e contatando instituições. Diversas já fazem isso, como a FAS [Fundação Amazônia Sustentável], onde estive, o pessoal do Repórteres da Floresta, além de outros, eles além do trabalho para populações ribeirinhas e quilombolas, tem um jornalismo calcado na preservação de terras, sociais e de recursos, indígenas e naturais, fabuloso. Tornar essa gente mais e mais renomada é tudo que necessitamos.”
Já na seção final da aula, onde chamou para falar Cameron Cross, Lapa também aproveitou para expor outros relatos de populações e indivíduos quilombolas e indígenas. Entre eles, a pesquisadora ressaltou como hoje nas redes sociais é necessário não apenas difundir o jornalismo ligado à preservação e difusão da luta originária, mas como é crucial transformar suas vivências parte de um aprendizado social, evitando a perpetuação de estereótipos e da redução dos indígenas a agentes passivos, sempre incapazes de falar e que precisam de um outro alguém que os “codifiquem”.
Falando do livro “Indigenous Digital Life”, de Bronwyn Carlson e Ryan Frazer, e de um artigo de Michael Merker sobre essa simbiose, a especialista ressaltou como com o avanço tecnológico e a chegada das mídias o trauma de décadas de silenciamento foi responsável por uma desconfiança por parte de lideranças. Mas que, com a crescente implementação de um jornalismo sustentável a estas narrativas sem estereotipá-las ou obscurecê-las no debate público e a maior responsabilidade de veículos independentes ou racializados, as narrativas se tornaram mais adequadas a eles e também aos criadores de conteúdo na comunicação.
“Em vez de sempre reproduzir a ótica colona de ‘deficiência’ imagética indígena, é necessário mostrar, junto com a mídia tradicional, mas mais ainda neste espaço das redes, plural e de maior efetividade direta a um conteúdo, como um espaço de ação, produção e criatividade indígena. E principalmente de torná-los agentes e objetos de análise humanizados, no qual suas lutas, dores, incertezas, virtudes, descobertas e criações são parte do que nós somos. Integrados ao mundo e ao debate público. Em vez de ser ‘povo do passado’. Olhando para o hoje e o futuro, trabalhando para construir melhores relações. Não deles conosco mas de nós para com eles. Ao mesmo tempo, integrá-los ao que somos hoje, midiaticamente plurais, mas sem tirá-los a tutela do conhecimento. De mostrar que eles ainda são fonte de muita reflexão e coisa intelectual para nós.”
Ao mostrar em seguida, relatos de Maurício Duarte, indígena atuante na moda e do cacique da tribo Pankará, encerrando a aula — e o curso —, Valéria deu um belo recado a todos. De como a essência de um povo, nas mais distintas formas de ser manifestada, atravessa por décadas o que somos, de uma forma ou de outra. E ela, jamais, em hipótese nenhuma, deve ser esquecida por nós, que somos partes disso. Alguns, de forma literal, outros de maneira influenciada. Ao longo de séculos, dias, meses, anos.
E esse é o impacto que o povo indígena carrega à nação brasileira, mundial. Um legado impossível de ser apagado. Na terra, no ar, na carne, pele. Essência essa que nunca morrerá e nunca deve ser silenciada. Por um motivo sólido: não podemos silenciar nós mesmos. Daí a imprescindibilidade de darmos luz a estas populações. Originárias no nome, mas tão atuais.
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