Sara na palestra. Foto: Kelvyn Araujo.
A comunicadora, um dos maiores nomes da mídia independente negra americana, em visita única ao país ressaltou pela sua trajetória a força de um trabalho organizacional relevante e de êxito social sem perder o lado idealista.
Desde que a comunicação extra-tradicional começou a ganhar força a partir dos meados do século 20, muitos questionamentos sempre circundam o assunto. Grande parte deles, indubitavelmente, acabam incorrendo em um tópico clássico: da manutenção dele resguardando ideais e possuindo uma fortaleza financeira que o permita ser lucrativo e relevante. Apesar de mais difícil do que os veículos de mais renome, a façanha pode ser feita. Exemplos não faltam e organizações consagradas hoje enfrentaram a celeuma em seu processo de crescimento — e aqui não estamos falando do rentável apenas, mas do tempo de atividade das iniciativas.
Dentro disso, o curso de Diversidade e Inclusão na Comunicação e Jornalismo Pós-Digital, realizado desde março último em parceria conjunta da Rede Jornalistas Pretos com a UFRJ, não podia se furtar de entrar a fundo no debate. E nesta última sexta-feira (28), foi exatamente o que o curso de propôs. E da melhor maneira possível. Isto porque, para ministrar uma palestra que ia direto ao encontro do assunto, foi chamada Sara M. Lomax, uma das profissionais nas quais sua trajetória se não é apenas um sinônimo de potência, é digna de intenso e inesgotável respeito e reverência.
Formada em jornalismo na Universidade da Pensilvânia, em Filadélfia, em 1987, de lá até hoje, criou um currículo invejável em quase 40 anos de trajetória. No início da década de 1990 foi co-fundadora da revista HealthQuest, que tratava sobre a saúde da população negra. Primeiro periódico de circulação nacional com a iniciativa, foi pioneiro na área e garantiu grande repercussão. Algo improvável a priori pelo caráter altamente ‘me and myself’ do projeto, independente e feito por ela com intuito totalmente a parte de pretensões em larga escala.
Enquanto ao cursar dos anos seguintes intensivos estudos e também colaborou com outros veículos — dentre os quais estão o The Atlanta Journal Constitution, The Miami Herald, The Philadelphia Inquirer, Essence Magazine e American Visions Magazine —, Lomax desenvolveu a WURL Radio em parceria com seu pai, na década de 2000. A entrada de Lomax como coordenadora geral se deu já em 2010 e, sob sua liderança, ela transformou a rádio, oscilante em seus primeiros anos, em uma mídia de alta relevância. Além de maior estação negra na própria Filadélfia, veio a ser uma das mais relevantes de todo o país e uma referência na comunicação racializada americana. Gerenciada por profissionais pretos e que ao mesmo tempo falam para a comunidade e para todo o país esmerilhando diversos assuntos.
Como não bastasse todo o gigantismo produzido, em 2021, ela — eleita para conselho de curadores de uma universidade no ínterim — desenvolveu a URL Media. A rede promove contatos entre organizações e profissionais racializados para implementação de projetos, recrutamento de vagas e também para captação monetária de suporte à ONGs de assistência à populações negras e originárias em situação de vulnerabilidade social.
Tudo isso um resumo de uma trajetória dedicada aos próprios princípios, de luta à igualdade racial e ao protagonismo na área da comunicação a tais indivíduos, invisibilizados socialmente nos mais distintos níveis. E além disso, Lomax mostrou, por meio de dados destas organizações nas quais atua, a importância da sustentabilidade organizacional e de um equilíbrio entre o financeiro, o lado empresarial das iniciativas e os ideais próprios nos quais defende de forma aguerrida, pra dizer o mínimo.
O grande chamariz da sua presença na palestra foi o de ressaltar que nem só de ideias se faz presente o ativismo e o impacto dele, mas principalmente de pessoas e recursos. E de que o poder da sustentabilidade dele se dá por uma efetividade de tais campos que muitos ou não preferem enxergar ou ingenuamente acham desnecessários tocar, além de, claro, o seu eu e o que você acredita.
Da origem às primeiras iniciativas: a importância das pessoas em florescer a sustentabilidade
No início da aula, Sara já ao fazer as apresentações iniciais de sua vida antes de contar a fundo a respeito dos projetos que coordenou e fundou, fortificou um dos fundamentos considerados primordiais por ela na construção do que ela chama de “sustentabilidade em ativismo”. Ao falar da importância da família, toda negra, e do suporte e ensinamentos dados, a jornalista e empreendedora frisou que não apenas a força familiar foi a motriz de sua atividade posterior como fez questão de pontuar o papel do círculo pessoal e dos “feedbacks tácitos” na solidificação de uma organização, seja ela de ordem focal financeira e midiática como independente ou extra-tradicional.
“Quando falo da minha família lembro o quanto eles formaram bases para o que viria a ser hoje. Aprendi pelos meus pais a entrar na vivência das pessoas negras e do que elas eram. Em casa eu era indiretamente letrada socialmente, então aí surgiu a ideia que futuramente veio a ser construir uma comunicação representativa a estas pessoas, a mim. […] Era estranho também pois ao mesmo tempo que tinha essas referências em casa, eu era a única negra na minha sala, então no mundo social fora de lá era difícil. Tive uma infância linda por um lado, mas ao mesmo tempo isolada. […] E daí vem a importância das pessoas no que você faz, no que você pode absorver delas. Fora do ambiente de trabalho. O que elas te influenciam a ser um melhor gestor e formar o que você quer formar na sua empresa, e como isso te impacta. Por isso dou tento valor ao lado pessoal também. […] É primordial.”
Vista de parte do auditório, presencial no campus da UFRJ. Foto: Kelvyn Araujo.
Em seguida ao continuar falando da família, Sara esmerilhou-se nas primeiras experiências efetivas suas de projetos na comunicação racializada. Contando sobre o período de sua graduação, ela entrou na fundação da revista HealthQuest, desenvolvida no início dos anos 1990 por ela. Ao citar as motivações para a criação do periódico, frisa justamente como a imersão à percepção da realidade de mundo dos pais e parentes — sobretudo do pai, que era médico — foi fundamental neste início de carreira seu.
“O surgimento da HealthQuest credito a isso também. Meu pai era médico. E acabei fazendo uma revista voltada à saúde de pessoas negras. […] O trabalho foi meio que único, acho. Naquela época não existia debate de saúde de negros em revistas, jornais. Havia algumas matérias isoladas, raras, mas nada dedicada à comunidade negra. E sabemos que a população negra, até pela condição de inferiorização social imposta, era e é muito mais afetada por diabetes, cânceres e outras doenças. Daí fizemos essa revista HealthQuest. […] Ela foi uma coisa bem independente, e tivemos ótimos frutos. Produzimos mais de 5 mil publicações e tivemos dois livros lançados por ela. Estávamos adiantados nessa época pois hoje todos falam mais sobre o assunto, mas na época era uma vanguarda.”
Justamente ao relatar o tema, Sara especificou a importância de se dedicar aos próprios ideais na hora de coordenar iniciativas bem-sucedidas posteriormente, frisando o quão crucial, segundo ela, é “apostar” no que você quer dizer, algo salientado na seção de perguntas e respostas perto do fim da aula. “Naquela época [do HealthQuest] quem nos dissesse que eu conseguiria relevância e enorme frutos falando do que dizíamos eu não acreditaria, mas ainda que tivéssemos uma boa sustentabilidade depois, eu investi na ideia pelo próprio desejo, ideal de dizer o que tinha de dizer. […] E no fim das contas, se ouvir, estar consigo, em um certo nível de paz com que você quer dialogar é base de tudo.”, complementa.
Desenvolvimento da WURD Radio, projetos correlatos, caráter de importância e o equilíbrio organizacional
Sara também falou, claro, da WURD Radio, formada por ela e pelo pai já em meados da década de 2000. Com a atividade à vera se intensificando fulltime já no início de 2010, a jornalista e empreendedora se tornou coordenadora solo a partir de 2013. Ela se firmou como marco da mídia independente negra americana, sendo a única rádio inteiramente composta por profissionais negros na Filadélfia e uma das quatro inteiras do país neste caráter.
A importância se fez mais forte pela relevância em audiência e credibilidade do veículo, hoje um dos mais importantes nos EUA da comunicação racializada. Hoje em dia, a sustentabilidade financeira e de repercussão da rádio é tão latente que dois outros projetos correlatos foram oriundos dela: a EcoWurd e a LivelyHood, ligados à conexão entre organizações e indivíduos para com empresas e iniciativas nos campos do meio ambiente e em vagas e projetos afirmativos à negros e indígenas, respectivamente. Além disso, captações e apresentações de patrocínios se apresentam por lá.
Sara falando sobre a rádio e suas iniciativas. Foto: Kelvyn Araujo.
Sara não esconde o orgulho da rádio e das iniciativas “filhas”, desenvolvidas na segunda metade da década de 2010 e que hoje, em sua visão, se mostram mais relevantes que nunca. Nesta hora da palestra, a empreendedora revelou a importância dos projetos terem sido implementados, no que ela considera, no momento certo para o debate público e captação de patrocínios e sustentabilidade financeira e profissional.
“Fico muito feliz de conseguir erguê-los. O EcoWurd surgiu de uma visão ambiental, de sustentabilidade em meio a discussão racial. As comunidades negras são e sempre foram impactadas pela poluição, lixo, ambiental. A conexão da violência com o racismo ambiental. Por exemplo, não existem tantas árvores em Philadelphia e em outras cidades de população negra, o que forma uma estufa, um calor, além disso que falo. E esse projeto, que iniciamos em 2018, veio em um instante no qual a discussão sobre mudanças climáticas se intensificou, o que mostra que também é um assunto não tão inserido quanto se fala mas que deveríamos abordar, principalmente em um momento como o de hoje. […] O LivelyHood também, mais geral, de criar networking e essas conexões das pessoas em vulnerabilidade e procurando algo à essas empresas e iniciativas. […] Na época do assassinato de George Floyd sobretudo, houve um boom na repercussão dele, o que deu uma luz sobre como o que procurávamos e procuramos fazer era de uma relevância enorme, ainda que natural em ser abordada.”
Concomitantemente, Sara mostrou a programação da rádio, frisando a importância de se organizar um veículo independente em termos de composição racial e social, medida singular se comparada a comunicação tradicional, claro, mas também de garantir e “tatear” os melhores meios financeiros de tornar a iniciativa vívida e sustentável, mesmo não abrindo mão da proposta primordial que quer imprimir. Ao responder um questionamento feito na sessão de perguntas sobre como foi o processo, a empreendedora falou da busca por um equilíbrio entre áreas de rentabilidade e ideologia própria como o cerne “primordial” da sustentabilidade.
“A rádio hoje é sustentável financeiramente e em termos de corpo empresarial, digamos assim. Mas foi um processo, no início de quando entrei à vera, em 2010, até 2013, recebi muito apoio do meu pai. Havia desconfiança à época pois eu era uma espécie de ‘nepobaby’, enfim, e por eu ser uma mulher, principalmente. E acham sempre que não somos capazes. E conseguíamos fazer o projeto, até que ele se foi. […] E pensei por vários meses: ‘não conseguirei pagar os funcionários’. […] Tentei tatear o que fazíamos e o que não fazíamos para manter um financeiro pagável e isso certamente ajudou, mas não sei como chegamos aqui até hoje, talvez por força divina, com certeza [risos]. […] Mas acredito, fielmente, que se atentar ao financeiro, como eu disse, é primordial. Cuidar dessa área é algo que muita gente às vezes coloca em segundo plano em projetos independentes de comunicação, até racializada, mas para garantir eles vívidos e relevantes isso, além das ideias e das pessoas, claro, é de importância. […] As pessoas têm de estarem com você, acreditar no que você deseja, e isso se dá com longevidade e certa seguridade financeira, de anúncios, patrocínios e parcerias. Não falo concessões, pois conceder o que você almeja com sua equipe é algo que jamais devemos implementar.”
Ela aproveitou para mostrar a mudança da sede da rádio para um terreno maior no próximo ano. Sara comemora dizendo que o upgrade resultou não apenas de parcerias e de uma boa prosperidade financeira, mas do próprio trabalho feito na rádio e mais uma vez, das pessoas que acompanham. Lomax frisa que um segredo que ela recomenda, para além do financeiro, é o de se atentar às pessoas na composição de uma organização.
“Um conselho que sempre dou é: ‘olhe para as pessoas’. Cuide delas. Para ser um bom empreendedor, digamos assim, é necessário entender o que se compõe um bom empregado. E tornar um ambiente compreensivo e principalmente seguro, mentalmente para todos, é primordial. […] Acredito que a rádio e todos os programas que mostrei [no slide] também dão certo pela segurança de todos que os fazem. Ninguém traria tanta repercussão se não fizesse com amor e carinho, o que todos tem na WURD. Isso acho fundamental. Você não chega a lugar algum sozinho.”
A URL Media e considerações gerais sobre credibilidade na organização
Sara tratando sobre a URL Media. Foto: Kelvyn Araujo.
Outra iniciativa ressaltada por Sara de sua gerência foi a URL Media. Fundada em 2021, o projeto seguia parte do que o LivelyHood trazia em seu cerne: girar a roda para alcance de pessoas negras no mercado da comunicação e captação de recursos e organizações para atuar junto aos mesmos. Ele, que vive de receita própria e com anúncios e patrocínios, surgiu, segundo a empreendedora, motivado pela repercussão do caso George Floyd, no qual Lomax sentiu que era relevante não apenas cultuar o direito de pessoas pretas à vida, mas à especialização e sustentabilidade na área profissional, específico da comunicação, cuja jornalista atuava.
“O URL Media veio também desse ímpeto de networking, tornar redes entre essas pessoas e a comunicação em modo mais global, amplificado. Ele tem também a questão financeira, que é importante, compartilhar recursos, fluxo de caixa e captar recursos entre organizações parceiras, do próprio site e projeto e próximos, é algo como disse sempre muito crucial. […] Mídias negras, sobretudo nos EUA, são cronicamente sub-financiadas, logo tentamos suprir isso a nós e outros profissionais com esse projeto.”
Ela continua:
“Não só nele, mas na própria rádio, ver bem que recursos vão entrar, por onde captamos, quem são os nossos parceiros e o que conseguimos é algo muito importante. Não pelo aspecto da organização, mas da seriedade do trabalho, para sabermos quem está efetivamente está conosco, mas para termos a noção de que um trabalho de impacto, como é a rádio, a URL, vem de um fluxo financeiro corrente, digamos assim, e de uma responsabilidade em torno dele. […] Mais do que dinheiro em si é perceber: o que ele traz, geramos e de quem ele vem, e do que de quem ele vem somamos a nós. Nesse caso usarmos ele para impulsionar talentos é algo muito nobre e as captações e quem capta sabe disso. Então o recurso vem a uma ajuda primordial, não como uma concessão do que somos e a quem representamos.”
Foto: Kelvyn Araujo
Pelo fim da palestra, antes da sessão de perguntas e respostas, Sara elencou alguns conselhos nos quais ela considera pilares de uma sustentabilidade comunicativa independente, arraigada em princípios próprios mas simultaneamente de solidificação empresarial e em repercussão própria. Além de frisar tópicos esmerilhados anteriormente nesta matéria, ela aproveitou para adentrar em outros, como a clareza das propostas impostas em sua iniciativa e principalmente, saber quem você é o que você pode fazer.
“Ser claro com quem te acompanha e ao seu time é sempre primordial. Mais do que isso, um conselho que dou, é seja claro com você e se permita estar 100% confortável quando se entra em um projeto. O patrão ou outro não te dizerá quando você deve relaxar, descansar ou ver um filme para não se esgotar mentalmente ou estar a beira de um ataque de nervos em um momento difícil. Você vai. Então um conselho que sempre dou é reconhecer seu eu e se permitir. Permitir acreditar no que você é e pode fazer e permitir se acreditar nos seus limites e até quando vai suas responsabilidades. E acreditar em você. Acreditar no que você é capaz e saber ter uma certa latente intuição. Ela não guia tudo, claro, mas sem se ouvir, acreditar no seu ideal, não se inicia um projeto, uma rádio, um veículo, nada. Então para seguir, para se manter e crescer isso tudo importa. Mas se conhecer antes de conhecer a sua iniciativa é tudo.”
Com tal declaração, Sara fez questão de mostrar algo crucial na relação de sustentabilidade financeira e de credibilidade social no que você faz: a manutenção dos princípios apesar de tudo. A despeito de soar uma pretensa auto-indulgência utópica, no frigir dos ovos a manutenção do acreditar em si e do rótulo “D.I.Y”, no melhor estilo “do it yourself’, garantiu à ela uma trajetória invejável na comunicação, como empreendedora midiática bem-sucedida ser humano até os dias de hoje.
Foto de Sara (meio, quinta da direita à esquerda atrás, ao lado de Eliane Almeida, da equipe do JP) com jornalistas e comunicadores e parte da equipe do consulado americano. Divulgação.
Próximas aulas e o curso
O curso “Diversidade, Inclusão e Novos Formatos no Jornalismo Pós-Digital” está em atividade desde março último, em parceria da Rede Jornalistas Pretos com a Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Uma iniciativa coordenada por Marcelle Chagas e Ivana Bentes, contará com aulas até julho.
Todas elas podem ser conferidas integralmente no canal do YouTube da Extensão UFRJ. Pelo nosso próprio site, na aba “Notícias”, também estão as matérias semanais de cobertura das aulas, com os principais destaques apresentados pelos profissionais convidados.
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