No encontro promovido, a co-coordenadora da iniciativa e especialista em comunicação frisou principais tópicos guiadores das redes no mundo de hoje, que vão desde a pluralização de agentes até características semióticas e literais multimídia nos conteúdos
Foto: Divulgação.
Não é de hoje que existem diversos estudos que perpassam a temática de analisar as redes sociais no mundo contemporâneo. Avaliações sobre a fidelidade em captar as nuances delas com precisão à parte, o fato é que o assunto é pertinente, rende e gera inúmeras reflexões há bastante tempo. Regulamentação, discursos, quem produz, consome, mediador, prós, contras e linguagens utilizadas estão quase sempre entre os pormenores destrinchados por especialistas de comunicação e sobretudo da área jornalística e midiática digital.
Nesta sexta-feira (24), dentro do curso “Diversidade, Inclusão e Novos Formatos no Jornalismo Pós-Digital” o rol destas análises recentes teve um capítulo importante, com uma aula comandada por Ivana Bentes sobre a temática. Ela, no encontro intitulado “Disputas Narrativas, Influenciadores e a Nova Ecologia das Mídias”, falou sobre a conjuntura atual de criação de conteúdo nas redes, a composição social e imagética na hegemonia deste conteúdo, além da importância da diversidade nas plataformas digitais nas mais distintas angulações.
Bentes, co-coordenadora do projeto, professora da UFRJ, doutora em Comunicação e antiga secretária do Ministério da Cultura do Brasil, trouxe um panorama analítico geral da situacao de “digitalização social”, usando palavras da própria especialista, sob uma perspectiva linear, demonstrando pontos cruciais para entender como funcionam as redes, seu público, criadores, conteúdo produzido e impacto dele atualmente.
As transformações específicas da comunicação tradicional para a digitalizada e a promoção da autoformação do mundo informativo atual
No início da aula, Bentes pontuou uma série de tópicos nos quais ela credita como norteadores da relação social nas redes atuais e no mundo “digitalizado tecnologicamente” — como dito pela própria. Entre os listados, estão sete: o midialivrismo, posse das diferentes linguagens, apropriação tecnológica por distintos grupos, horizontalização do compartilhamento, redes e plataformas interativas, ambientes cognitivos novos e a autoformação massiva.
Dos sete, a especialista reforçou três como os principais de impacto na relação: o midialivrismo, posse de linguagens e a autoformação. Ela respectivamente os ressalta por dar às redes três “poderes”: de universalização das infraestruturas e impactos, se firmando como um meio relevante de presença nas vidas das pessoas para validação e plataforma ampla, fora da mídia tradicional como antes era a regra, daí o termo; a sedimentação de distintas criações de conteúdos em vários nichos e linguagens, mas que juntos ajudam e são efetivos em engajar e tornar o usuário parte integral; e a maneira como as próprias redes se retroalimentam do feedback dos consumidores e assim produzem seus conteúdos tendo como base a relação mais direta com eles, justamente construída pela objetividade do conteúdo em “fisgar”, assim por dizer, quem o acompanha.
Ivana [em baixo, centro] junto à Eliane Almeida [esquerda, topo], parte da equipe do curso, e Stefanie [direita, topo], intérprete de libras.
Em seguida, a pesquisadora dá exemplos de como estas frentes se mostram imponentes e dos impactos diretos na sociedade em determinados temas. Bentes começa pontuando como a luta da mulher feminista pelo seu espaço, pauta ainda mais vívida nos últimos anos, surgiu como um movimento inicialmente de jovens periféricas pela internet dançando funk e outros gêneros, o que gerou debates — positivos e negativos — sobre a exposição de seus corpos.
Com a discussão, movimentos, em formas de postagens de suporte e hashtags, se intensificaram, criando uma narrativa de apoio à emancipação do corpo feminino. Conforme os anos foram passando, os debates evoluíram para direitos femininos em outras áreas digitais, discursos que foram se migrando para a sociedade extra-internet. Neste instante, a especialista mostra como a crescente possibilitou uma tríade importante, em suas palavras: de exposição à demandas de grupos que não seriam amplificadas fora do meio digitalizado, garantindo uma diversidade de protagonismo; da capacidade de transpor assuntos das redes ao dia a dia comum; e a força em legitimar lutas de conjuntos e pessoas historicamente marginalizadas.
“A predominância de novos sujeitos no discurso e como norteadores do impacto é uma importante parte para analisarmos como funciona as redes hoje. E o poder de dimensão deles e do que é produzido é essa crescente. Temos esse exemplo, mas isso se estende para outros, povos originários, racializados, que possuem uma cultura extraordinária, silenciada e negativizada por intolerância religiosa, fundamentalista, às vezes por católicos, enfim. Essa pesquisa que realizei, sobre os novos sujeitos no discurso, foi muito importante para se perceber como as redes, positivamente, permitiram essas demandas, culturas, terem luz e serem difundidas em suas necessidades, lutas e verdades. E de como conforme há esse espaço democratizado, tanto que já temos essas pessoas, grupos, como sujeitos de discurso, quando numa mídia tradicionalista eles jamais seriam, temos cada vez mais as pessoas nas redes tendo acesso a estas distintas narrativas, vivências, lutas e levando para a sociedade ver, analisar e debater. E mostra todo o impacto, que cresce do digital e vira algo pra vida. Há também, além dos sujeitos, a força da linguagem, que a gente vai falar mais para a frente.”
“.Comsumo” e a comercialidade do debate
Em amálgama ao assunto, Bentes exemplificou casos em projetos, como a Rádio Amnésia-Santeria, rádio comunitária que mostrava a cultura candomblecista e que ganhou enorme repercussão nas redes pelos meados da década passada; e o movimento Think Olga, de combate ao assédio e a importunação sexual. A pesquisadora e doutora também mostrou como o meio digital propiciou a fortaleza de uma cultura de consumo sobre tais temas, evoluindo para a comercialidade intra e extra-digitalizado.
Embora geralmente tal miscelânea entre comercialidade e naturalidade de discursos nas redes seja alvo de criticas por muitos especialistas, Ivana vê nessa adoção pelas empresas à pautas digitais que acabam acrescidas à sociedade algo positivo. “Outra coisa importante é vermos como estes discursos antirracistas, de visibilidade a tais pautas e lutas acabam guiando o consumo, a comercialidade por parte das empresas. E que bom que faz isso, que vai pra essa parte da adoção das empresas. Tem o intuito da venda e muitas das vezes esbarra numa superficialidade, sim, mas amplia a mensagem sobre outra embalagem, outra linguagem e como a gente sempre fala aqui, é sempre a versatilidade da linguagem que é importante. E torna isso parte de um sistema dentro das empresas, de alcance para o público consumir mais, etc. Em determinados casos há uma crucialidade, como criação de roupas plus size em marcas, maquiagens afros, etc. Não torna as lutas elitizadas, vai da intelectualidade baseada ao comercial, acessibilidade e diferença para o público geral.”, acrescenta.
Em seguida, Bentes dá outros exemplos, como a estética de empoderamento negro feminino em marcas, festivais e projetos como fonte desta migração. A pesquisadora frisa como esta adoção acaba parte do processo do que ela chama de “pavimentação” do ambiente digital como meio focal desta e outras pautas para a efetiva sociabilidade física e impacto no mundo contemporâneo.
Um dos principais meios afetados pela tal pavimentação seria a moda que, em sua opinião, se tornou um dos ambientes mais inclusivos nos últimos anos, com até mesmo pessoas não-racializadas ou magras adotando roupas e estilos visuais oriundos de grupos pretos ou gordos, nos quais muitas das peças em campanhas foram originalmente envisionadas.
A estética e linguagem na cultura digital: o mix de referências e modelos tradicionais com o estilo exclusivo das redes.
A doutora e especialista também citou na aula um outro vértice da comunicação digitalizada: a migração de imagens, referências e processos da mídia tradicional, como a TV, jornais e cinema para as redes por meio de dispositivos, aplicativos e filtros. Neste instante, Ivana dá exemplos de como as criações de conteúdos sempre estão atribuídas de elementos e características — tanto narrativas quanto de citações diretas — cinematográficos e televisivos da cultura popular comum, mas transpostos em uma linguagem digital única.
Novamente, em contrapartida a determinados pesquisadores e teóricos, Bentes se mostra positiva perante tal característica, não observando tal prática como um roubo de uma “comunicação consolidada”, mas sim uma migração de uma linguagem já difundida e conhecida extra-redes a mensagens mais diretas em outro veículo, digital, no caso. Para além do argumento, a pesquisadora também apresenta um outro complemento a sua apreciação pela iniciativa, que em sua visão “cala a boca” dos que dizem que a internet é uma ruptura do que a mídia tradicional construiu ao longo dos anos.
Ivana mostrando alguns destes exemplos das linguagens digitais utilizando características e referências históricas; nesta foto uma ilustração feita e postada digitalmente de uma obra com as retratadas usando máscaras, representando o período de Covid-19. A imagem fez tanto sucesso que acabou parando em pôsteres promocionais e redimensionadas em revistas no período 2020-2022.
Memes com referências do cinema e tv, disponibilização de conteúdos usando edições já consagradas na linguagem das telonas e televisivas são exemplos de como essa amálgama opera, segundo Ivana. Ela também entra na seara dos criadores de conteúdo, frisando alguns como amostras benéficas, em especial Raphael Vicente, conhecido por viralizar nas redes mostrando a realidade de sua família em vídeos virais curtos.
Na visão de Bentes o estilo de conteúdo feito pelo próprio Raphael, tal qual outros influenciadores, conversa totalmente com a feitura — em roteiro e edição — com o que é feito na televisão, sétima arte, séries e afins.
“Algo que é realmente incrível e que mostra muito de como funciona a criação de conteúdo digital é essa convergência. O Raphael tem um milhão de seguidores, os vídeos dele sobre a família, sobre a sua vida, vivências, etc, tem uma despretensiosidade, algo direto ao que é a linguagem digital. Mas ao mesmo tempo há essa interseccionalidade com técnicas, características, referências visuais tradicionais, cinematográficas, televisivas na narração, roteiro e edição, quase uma mini novela ou série. Isso é genial. Mostra como para a criação de conteúdo, o meio digital não é a ruptura da mídia tradicional, mas sim a convergência imprimida em outra linguagem. E no fim é tudo sobre isso, linguagem.”
Outro aspecto positivo frisado por Bentes se dá em páginas dedicadas a disseminação de trechos de obras literárias ou cinematográficas, que são, em sua visão, uma amostra de como a digitalização e a tradicionalização se complementam em conteúdos, alterando a linguagem e a forma do consumo. Além disso, a pesquisadora apresentou como a chamada cultura da “memetização” também é parte deste processo de mescla, por se aproveitar de fatos coletados da mídia tradicional como foco de uma linguagem própria digital para as mais distintas angulações — de protesto, raiva, humor, acidez e descontração — e públicos.
Narrativas midiáticas: estilos e linguagens inseridas
Em seguida, a especialista entra na parte de como e do que compõem as narrativas midiáticas digitais. Neste instante, Ivana dá alguns exemplos, mas ressalta em especial o padrão de anonimato, autoralidade genética e o que ela chama de “remix de arquivos”. Neles, respectivamente, estão inseridos elementos principais da relação redes x sociedade, que são a falta de necessidade da égide de nome e marca para um veículo, pessoa ou grupo ser credibilizada hegemonicamente; da presença particular em diferentes linguagens de conteúdos específicos que possuem seus públicos; e, por fim, a utilização da convergência em referências tradicionais inseridas no digital — seja pelos memes, estilos de edição ou até base de conteúdo — entre usuários.
Ivana deixa claro que tais narrativas não necessariamente servem a um viés positivo, sendo também usadas como parte de um modus operandi de grupos políticos disseminadores de fake news, discursos de ódio e afins — e que nem sempre são investigados e combatidos pela regulamentação, ou melhor, a falta dela, nas redes. Mas, a pesquisadora, por outro lado, mostra como o problema não está na construção destas narrativas e linguagens inseridas, mas sim em quem está por trás delas. E que, ainda assim, elas foram responsáveis pelo que a educadora chama de “revoluções de comportamento” positivas nos últimos anos, citadas anteriormente nesta matéria.
Ivana mostrando as páginas “familiaquilombo” e “asnegasdozirigidumoficial” do Instagram, símbolos de resistência e criação de conteúdo ‘alternativa’ exemplificados pela comunicóloga.
Perto do fim da aula, a especialista mostrou páginas e contas conhecidas nas redes por representarem o que ela chama de “frente resistente” ao que se geralmente é considerado como válido ou aceitável à retratação primariamente na mídia tradicional ou pela sociedade antes da internet. Ivana relata como, apesar da convergência de elementos tradicionalistas de TV e afins fazerem parte da criação de conteúdo na internet, uma grande dose de ruptura à “agenda” se faz presente e é necessária, devido justamente a um mundo hegemonicamente racista, machista e pouco diversificado que vivemos.
A pesquisadora teoriza que, inclusive, vem desta ruptura em narrativas distintas que se mostra a força das redes hoje. Ao contrário, novamente de outros teóricos, Ivana adota um tom bem menos alarmista ou crítico sobre a relação midiática mais digitalizada hoje, ressaltando a importância da convergência para inclusive o jornalismo tradicional, ao fim da aula.
“O lado de ruptura se dá nessas narrativas, de mostrar as vivências pretas, racializadas, indígenas. Normalmente, isso, tudo que falamos no início da aula sobre as lutas femininas por espaço também, não tem luz na mídia tradicional que segue hegemonia, empresarial, financeira que por sua vez é embutida no capitalismo, regime onde há definição de papéis: do branco, masculino, cis, cosmopolita como padronização e referência. Fora isso, não há outros espaços de relevância. Com as redes isso se intensificou mais. É claro que precisamos percorrer muitos caminhos para melhorá-las e o papel da mídia digitalizada hoje tá longe de ser o ideal, mas se avançou muito. O jornalismo tradicional deve isso às redes, os alcances das notícias se fazem por lá e muitas das fontes diretas se fundem pelas redes e de lá vai aos sites de notícia, portais, TV e jornais. Essa ebulição de narrativas fora de um eixo e a interferência delas a um meio comum não digital é um respiro, uma convergência importantíssima pois tira a hegemonia de um só lado, coloca o jogo parelha. E é assim que precisamos ter as coisas. É necessário muita coisa, mas sempre gosto de pontuar que o problema não é a rede e o impacto, quem está por trás dela dependendo da plataforma, discurso e disseminação.”
Próximas aulas e o curso
O curso “Diversidade, Inclusão e Novos Formatos no Jornalismo Pós-Digital” está em atividade desde março último, em parceria da Rede Jornalistas Pretos com a Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Uma iniciativa coordenada pela própria Ivana Bentes com Marcelle Chagas, contará com aulas até julho.
Todas elas podem ser conferidas integralmente no canal do YouTube da Extensão UFRJ. Pelo nosso próprio site, na aba “Notícias”, também estão as matérias semanais de cobertura das aulas, com os principais destaques apresentados pelos profissionais convidados.
Leave A Comment