Encontro liderado pela doutora e mestra em Ciências Políticas além de traçar panorama histórico sobre o que permeia a noção de privacidade de dados, trouxe reflexão sobre a importância dela no mundo de hoje
Johanna no evento palestrando.
O curso “Diversidade, Inclusão e outros formatos no Pós-Jornalismo Digital”, promovido pela Rede JP em parceria com a Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), recebeu nesta sexta-feira (17), Johanna Monagreda. Ela, doutora e mestre em Ciência Políticas e pesquisadora da área de direitos humanos e iniciativas de implementação à igualdade racial e feminina na América Latina, veio para coordenar encontro sobre um tema atual e de relevância, sobretudo na era digitalizada de hoje: a política de governança, proteção de dados pessoais e direitos fundamentais na internet.
Durante a aula, a especialista — atuante no Data Privacy Brasil e que se debruçou na temática a partir de seus estudos sobre direitos humanos na era digital —, focou em esmerilhar um panorama completo sobre o assunto e tudo que o cerca. Além de, claro, explicar o que permeia a noção de privacidade aos dados pessoais, Monagreda discutiu desafios relacionados à ela e a necessidade da sociedade contemporânea em dosar a inovação tecnológica e o desejo em alcançá-la com a preservação dos direitos humanos, que acabam violados no que a palestrante chamou de “corrida digitalizada”.
A noção de proteção e a pavimentação a parâmetros legais
Monagreda começou a aula atribuindo pontos históricos da noção de preservação a dados individuais. A especialista ressalta que o cerne ideológico em torno da temática se iniciou no fim do século 17, a priori como parte de uma “modernização” do Estado. Essa modernização incorporava maiores delegações à demandas pessoais e crescente limitação do poder estatal sob os cidadãos, égide que ditava costumes, culturas, regras que nem sempre conversavam com os ideais e vontades populares.
Com o passar dos anos, a noção de preservação da individualidade e a ideia de sua função para aprimoração de uma sociedade evoluiu para o direito à proteção destas pessoas pelo próprio Estado. Esta teoria já se conectava com um outro cerne, de manutenção da dignidade dos cidadãos e da não-discriminação e de garantia ao povo uma importância a suas demandas, ao mesmo tempo que suas identidades e direitos devem ser resguardados e garantidos pela entidade estatal.
Monagreda pontua no início da aula como já pelo século 19, quando tal atribuição ideológica passou a ser mais difundida, a noção de direito à proteção da individualidade já se formou como base legal do que viria a não apenas ser a Lei de Proteção de Dados (LGPD), como dos próprios estudos e movimentos de preservação de dados em si até hoje.
“Essa separação público-privado neste período representa uma separação do que era visto na Antiguidade para o começo do Estado Moderno, no começo desta noção. Se antes havia uma noção de preservação da individualidade na garantia de maior ações estatais que conversem com a demanda dos cidadãos, depois se aprimorou para o direito à proteção da individualidade, mais do que a preservação dela e de seus direitos que estão, ou deviam estar, no que o Estado coordena. A proteção ia de preservar a dignidade pessoal dos cidadãos e de dignidade a eles individualmente. Ainda assim, essa garantia a individualidade é coletiva, conjunta. Pois todos os cidadãos merecem e a lei se aplica à todos, além de que deve ser cumprida a todos. E no fim estabeleceu bases do que falamos e estudamos até hoje, legalmente, nas leis, e socialmente. De que a ideia de um avanço coletivo se dá no respeito e na preservação da individualidade e do que lhe compete. Se temos o vazamento de dados de cidadãos, direitos à anonimização, à privacidade de elementos perante a eles, temos um caos social de vulnerabilidade. A preservação da individualidade no Estado perpassa em garantir aos indivíduos plena segurança e, claro, igualdade de direitos, sobre suas demandas e características.”
Em seguida, para adentrar melhor ao assunto, Monagreda destrincha como o direito à proteção de dados e, subsequentemente, preservação da identidade individual dos cidadãos, foi se aprimorando ao longo dos anos legal e socialmente na forma do comentário acima, ainda que não totalmente no campo da “vida real”. Como marco desse avanço, a especialista ressalta a própria LGPD, 13.709, de 2018 e de como o texto da lei e seu cerne já estavam na Constituição como garantias básicas do Estado e do indivíduo.
Esmerilhando artigos da lei, a doutora e acadêmica pontuou a importância deles na preservação dos direitos dos cidadãos, sobretudo em uma era tão digitalizada como hoje na qual dados são facilmente cooptados por ferramentas de inteligência artificial para usos indevidos. Em particular, Monagreda ressalta o artigo 7, com suas bases legais impostas: consentimento, obrigação legal, execução de políticas públicas, pesquisa, defesa de direitos, proteção à vida e legítimo interesse.
A especialista conta como duas dessas bases, de consentimento e legítimo interesse, acabam entre as mais violadas nos tempos atuais, nos quais o consentimento, por mais que parcialmente concedido por nós, sempre acaba utilizado para além do que foi explicitado nas redes; e o legítimo interesse vira uma arbitrária ferramenta de manutenção de poder do Estado perante determinados corpos, vidas e gêneros, vistos como “não-legítimos” ou marginalizados. Neste instante da aula, Monagreda ressalta como essas violações vão ao encontro do conceito antigo das individualidades dos cidadãos serem mola propulsora das atividades do Estado, o que realmente acontece — mas apenas para restritos tipos de indivíduos: brancos, homens, cisgêneros.
Johanna palestrando ao fundo com os alunos presencialmente observando.
A pesquisadora aproveita para pontuar que a noção de “modernidade” junto com a de incorporação das demandas destes tipos de cidadãos ao Estado está embutida na ideia de desumanização de outros grupos sociais, negros, femininos e LGBTQIA+. Monagreda frisa que sempre é importante analisar a política de proteção a dados sob tal prisma.
“A noção de ‘estado moderno’ é a noção equivalente a um Estado que realmente conversa com o que falamos, de embutir a individualidade e respeitá-la ao mesmo tempo que absorver o que a compõe separadamente, sem violá-la. Mas isso só acontece com determinados grupos. A crítica antiga era que o Estado servia a um ideal burguês e que o povo deveria estar no interesse. Hoje o Estado serve a um ideal específico do povo, de um determinado tipo de povo. Branco, masculino, cisgenero. Por isso o Estado moderno tem de ter essa classificação. E a base do desrespeito à proteção de dados perpassa por isso. A falta de consentimento amplo, da lisura, a utilização para ferramentas que juntam em banco de dados imagens, vozes e áudios seus muitas das vezes sem você saber ou quando você sabe é para um serviço indispensável para você pela sua condição social, física. Os dados sensíveis são sempre de grupos vulneráveis social e historicamente, então quando se analisa política de proteção de dados, é necessário ver quem se é atingido e negligenciado por ela, o porquê e a quem mantém essa estrutura.”
Exceções da lei e o conceito de pacto social
Em outro momento da aula, Monagreda pontua também quais tópicos a LGPD não atua na proteção, em casos de dados para fins jornalísticos, de investigação policial e segurança do Estado ou pesquisa acadêmica configurada. A especialista ressalta tais pontos para que, segundo ela, possamos compreender como a comunicação — na forma do jornalismo — pode ser um meio de maior democracia e justiça na hora de denunciar brechas legais chanceladas estatalmente de infringimento a artigos da lei.
Em seguida, a doutora e acadêmica acabou entrando em um outro tema importante: o conceito de “pacto social” e de como ele fornece a base da relação Estado – direito à proteção da individualidade hoje. A especialista mostra como tal pacto se fortalece em duas frentes: sexuais e raciais, sob uma égide dominativa. Estas frentes são, como ela pontuou anteriormente, o vértice de como a diferenciação no tratamento e respeito a tais direitos protecionistas legais dos cidadãos se dá e quem não os têm assegurados de forma plena.
Monagreda aproveitou para apresentar alguns acadêmicos que versam sobre a temática, focando em dois particularmente: Charles Mills e Caroline Pateman. Ela frisa a teoria da “partição ontológica do ser”, que subdivide a sociedade em “pessoas e sub-pessoas”. Enquanto o primeiro grupo tem seus direitos plenos do Estado assegurados, o segundo é visto como invisível, ou “apolítico”, isento de ser objeto de políticas públicas.
Como exemplos, a especialista mostra determinadas práticas legalizadas por muito tempo de opressão à tais indivíduos postos como “sub-pessoas”, como a chamada legítima defesa da honra — que chancelava o feminicidio de homens contra esposas ou namoradas —; as antigas faltas de direitos aos povos originários e suas terras; e também a não-tipificação do racismo como crime inafiançável. Apesar de pontuar avanços nestes tópicos, Monagreda também revela, claro, como estas ideias e atos, muito tempo estruturados em lei, não apenas ainda estão vívidos na sociedade como operam em outras ordens hoje: em um mundo digitalizado, com o vazamento de dados destes grupos vulneráveis, uso de IAs para reconhecimento facial e afins.
“É importante vermos como este Estado moderno, que incorpora a individualidade e o direito de determinados grupos, privilegiados e operantes de opressão, por mais que tenha mudado estruturalmente suas leis, chancela o que elas diziam sob outras formas. Por isto, a análise de proteção a dados conversa do ontem para o hoje. Ver o que ele resvala no hoje é fundamental, crucial. Hoje muitas destas leis foram alteradas, mas de nada adianta se socialmente as ideias delas permanecem e, pior, se a chancela delas continua ativa sob outras bases. Bases de datificação da pobreza, racismo algorítmico e uso de IAs pra reconhecimento e por políticas de privação de direitos de individualidade e privatividade de dados. Controle sobre corpos, racismo científico, enfim, tudo isso opera na mesma função de opressão e impedimento da população à dignidade de seus direitos, algo que tá lá no artigo da LGPD e Constituição mas que em tese não é cumprido. É necessário vermos as outras bases nas quais isto se opera.”
Johanna [à esquerda, final] junto à Marcelle Chagas [também à esquerda, ao lado direito dela na foto], coordenadora do curso, e alguns dos alunos presentes no auditório da UFRJ.
Considerações gerais e a importância da privacidade de dados ainda mais forte para hoje e o futuro
Perto do fim da aula, a pesquisadora mostrou alguns exemplos de como tais operações destas opressões antes chanceladas por lei estão latentes hoje. Além dos próprios citados, Monagreda ressaltou como os estudos perante proteção à dados perpassam domínios importantes de interseccionalidade nas mais distintas áreas. Entre alguns dos mais latentes, a especialista frisou como a falta de proteção a dados atua na dataficação da pobreza e força do racismo científico.
“Práticas de monitoramento, que não são novas, de vigilância e cooptação de dados de forma escusa e nunca revelada propriamente por pessoas negras e pobres forma uma camada de opressão social tão grave quanto as tácitas, empíricas, pois operam em um campo quase invisível para muitos, mas vivo, o tecnológico. E usando a fragilidade que estes grupos já possuem como chamariz a captação desses dados. Este caso do adolescente que para obter lanche a um real precisou dar o CPF, a foto e rosto pro banco de dados do banco, que os revendeu, é perfeito pra explicar isso. A mercantilização da vida, cotidiana, negra e pobre, feminina para lucro de empresas, instituições, que claro, acabam servindo a um status quo, a um senso comum do Estado e do que ele espera, além de si mesmos. A interseccionalidade é importantissima e crucial para vermos e analisarmos o impacto da falta de privacidade de dados. Pois atinge determinados grupos, intrinsecamente, ao mesmo tempo e de forma avassaladora. Nunca deve ser uma análise isolada sobre um ou outro ou a uma determinada pessoa. Pois isso tem um grau de atingimento. Diferente e maior para quem sabemos quem.”
Ao encerrar a aula, que também contou com a exibição de um mini-documentário de Monagreda sobre seu trabalho como pesquisadora da área de privacidade de dados no DataPrivacy, a especialista respondeu perguntas dos convidados e aproveitou para agradecer a iniciativa e o curso, coordenado por Marcelle Chagas e Ivana Bentes. Ela teceu elogios pela experiência.
“É sempre muito gratificante falar sobre o tema. E ter um espaço de relevância, debate e consciência sobre estes assuntos tão diversos e que nem sobre todos estão dispostos a ouvir é algo muito importante e esperançoso, mostra que o assunto é importante e relevante.”
Próxima aula
A próxima aula (24) do curso contará com a participação de Ivana Bentes, que conduzirá o encontro “Disputas Narrativas, Influenciadores e a Nova Ecologia das Mídias”. Ela, co-coordenadora do projeto, professora da UFRJ, doutora em Comunicação e antiga secretária do Ministério da Cultura do Brasil, falará sobre a conjuntura atual de criação de conteúdo nas redes, a composição social e racial nas disputas de narrativas em redações de jornais e fora deles, além da importância da diversidade nas mídias.
O encontro, presencial — no campus da UFRJ, na Praia Vermelha — para alunos, se iniciará às 13:30 da tarde pelo horário de Brasília. Haverá transmissão online através do canal do YouTube da Extensão UFRJ, na qual serão coletadas perguntas que deverão ser respondidas por Ivana em tempo real no auditório da universidade.