Parte do terceiro dia da iniciativa, a especialista e acadêmica aproveitou para suscitar o debate sobre os papéis diretos que esse relacionamento comunicativo exerceu e exerce na sociedade em diversos prismas
Nesta última sexta-feira (22), ocorreu o terceiro dia do curso “Diversidade e Inclusão + Outros Formatos no Jornalismo Pós-Digital”. Ele, feito pelo Jornalistas Pretos em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), contou com a presença da doutora e professora Daniela Gomes para comandar um encontro sobre uma temática extremamente importante: “Um olhar diásporico da comunicação entre o Brasil e os Estados Unidos”.
Ela, que é doutorada em Estudos Africanos e da Diáspora Africana, docente em Estudos Africanos na Universidade Estadual de San Diego e mestre em Estudos Culturais, além de diversas outras ocupações, explorou na aula as dinâmicas e características que regem as relações comunicativas entre o Brasil e os Estados Unidos sob um prisma racial e diaspórico. Daniela tocou também em várias temáticas correlatas ao assunto, como as trocas culturais e construção de identidades de ambos países em relação ao povo negro; as diferentes formas de comunicação presentes nos mesmos; e o papel que tais distinções exercem.
A doutora e pesquisadora iniciou a aula traçando um panorama histórico de como é a relação de ambos países sob o olhar diaspórico desde o término do século 18 até a atualidade. Daniela ressalta que a visão dos afro-americanos perante à cultura e vivência brasileira se iniciou de maneira mais profunda neste período. Ela pontuou que foi construída a imagem a priori de que o Brasil fazia parte de uma proximidade ao conceito de “democracia racial” devido não só a políticas implementadoras do fim da escravidão mas pela noção modernizada de república, que passou a ser construída no fim do século 19 por aqui. Contudo, teóricos racializados estadunidenses começaram a enxergar as problemáticas das questões raciais em solo brasileiro quando começaram a terem seus vistos negados para entrarem, por serem justamente negros. A partir do século 20 e, especificamente, ao longo de sua primeira metade, estudos mais direcionados dos EUA à nossa nação se intensificaram.
Daniela ressalta que a partir do meio da segunda metade do século 20 foi quando os estudos teóricos afro-americanos de análise da situação diaspórica racial no Brasil se implementaram de vez como objeto constante.
“A partir dos anos 1970 e 1980 começa-se realmente uma intensidade nessa temática pelos estudiosos afro-americanos. Começa a ter de fato uma troca entre os ativistas daqui e os brasileiros, que com suas próprias experiências vivenciais, passam a contar o que é a situação racial no Brasil. Nessa época a gente passa a ter obras e publicações da Lélia Gonzalez divulgadas em inglês. Começa a se criar um fluxo de obras de estudiosos brasileiros vindo para os EUA e começa- se a ter uma ida de estudiosos americanos ao Brasil para pesquisar essas relações a fundo. A partir dos anos 2000, especificamente, a gente vai ter um número substancial de acadêmicos afro-americanos indo estudar sobre a diáspora africana no Brasil e relações raciais.”
Ela complementa dizendo qual especificamente é a parte do Brasil mais contemplada nessa análise afro-americana. Neste momento da aula, Daniela também não isenta a pesquisa estadunidense de críticas, salientando que embora a iniciativa de buscar compreender como funciona movimentos e populações raciais sob um regime de preconceito social e estrutural seja bem-vinda e essencial, tais compreensões devem ser tomadas levando em conta as individualidades da relação raça + povo + país, algo que não era tão considerado por alguns teóricos.
“O maior foco dessas relações de estudo e análise é Salvador, na Bahia, considerada a ‘Meca Negra’, o maior lugar fora da África com maior contingente de pessoas negras e de resistência afro. Os acadêmicos vão, claro, embora tratem o objeto de análise de uma maneira um tanto mais vivencial de tentar parecer uma proximidade ‘espiritual’, digamos assim, com o que é a África, muitas vezes não percebendo como até mesmo num ambiente concentrado majoritariamente de negros, as relações racistas também ocorrem de maneira bem forte. E aí é uma questão de análise territorial; o racismo no Brasil acontece diferente dos EUA. É uma nuance ainda mais intrínseca sobre determinados valores e até estereótipos que alguns teóricos e estudiosos negros acabam tendo sobre eles mesmos, sem saber. Os brancos, então nem se falam. E não adianta estudar as relações raciais de um país sem a gente, claro, entender o que as regem e suas características próprias, que mudam de cada lugar para cada lugar, por mais intersecções que hajam.”
Foto: Reprodução – Daniela (esquerda) com Marcelle Chagas (coordenadora do curso; em baixo) e Kamila Gomes (intérprete de libras).
Em seguida, a doutora e pesquisadora migra a aula para um outro assunto dentro do tema: a tecnologia e o papel que ela exerce nesta distinção entre as relações raciais do Brasil com o resto do mundo — em comparação específica, claro, com os EUA. Daniela elenca uma série de empresas de comunicação com maior lucro, arrecadação e poderio ativo no mundo como Comcast, Disney, TimeWarner e National Amusements e explica de que forma a hegemonia formada por tais organizações, em sua maioria, claro, americanas, ajudam a pautar demandas e visões de mundo, em especial, ligadas às questões raciais — sob um ponto de vista hegemônico e centrado aos interesses estadunidenses.
“Se há essas empresas que controlam a comunicação do mundo inteiro e têm essa origem, há um controle de narrativa, orientação e visão mundial, que se torna uma barreira intransponível. As pessoas ‘ah, mas a Globo’, etc. Ok, por mais que ela seja um conglomerado bem relevante na América Latina, assim como a Televisa no México, Al Jazeera no Oriente Médio, essas emissoras, por mais milionárias que sejam [e são], boa parte do conteúdo que passam é oriundo dessas ‘big companies’. Seja por fonte direta ou parceria que elas [as grandes companhias] têm com agências noticiosas. Então mesmo com o grande capital diluído, a influência do conteúdo vem dali, de um mesmo lugar. E é justamente nesse ponto que também entra a relação com a conexão de perspectiva de estudos raciais entre Brasil e EUA. Se há essa influência direta no mundo, obviamente terá nas análises raciais que nós mesmos às vezes fazemos de situações que vivemos. A questão é ligada ao poderio da comunicação, de quem manda nas narrativas, conteúdos e o que fica é: essas análises americanizadas, e até de outros teóricos e países, é feita realmente considerando nossas demandas reais e o que enfrentamos? As pautas raciais vão ser devidamente analisadas separadamente com esse contexto de poderio todo? É daí que vem o debate.”
Em seguida, Daniela ressalta algumas das relações raciais intrínsecas a ambos países. A pesquisadora mostrou exemplos semióticos de manutenção de papéis estereotipados em pessoas negras nas revistas, merchandisings e afins. Ela também demonstrou como com o advento da tecnologia — incentivada pelas big techs ligadas aos grandes conglomerados midiáticos e de comunicação, atuante em investimentos nas mais diversas áreas — símbolos de movimentos raciais e de resistência ao preconceito acabam não apenas deturpados, como banalizados.
“É extremamente importante a gente analisar o papel de como há essa mudança de significado perante determinados símbolos. Isso é não só, claro, muitas das vezes uma tentativa de achincalhar o movimento negro, mas também de aos poucos banalizar ou minimizar essas pautas. A partir do momento que há o “Black Lives Matter” e há outras pessoas colocando quaisquer coisas que não sejam outros grupos segregados socialmente e enfiando o “matter” no fim se mostra o recado de que aquele movimento, exemplificado naquele slogan, é algo qualquer como outra qualquer coisa. E com a tecnologia, o advento das redes, incentivado por essas grandes companhias, isso se dá não só com mais frequência, mas com mais voz também, pois qualquer um pode falar e viralizar do nada.”
Ela complementa que a percepção crítica perante tais questões, com o também próprio advento da tecnologia, deve ser aguçada ainda mais, devido ao maior acesso à informação, algo intrinsecamente ligado ao desenvolvimento de pensamento sobre diversas questões não apenas raciais, claro. “Não são apenas essas deturpações, essas semióticas que estão ainda muito presentes hoje, há também outras pautas e questões, ligadas por exemplo, a ditadura de corpos, magreza, gordofobia. A cultura da magreza está voltando com tudo. É algo que a gente nota que é o cruzamento de vários assuntos e que mexe com diversas pessoas. E usar a tecnologia, a internet, tão difusora desses discursos, para estudar, se aprofundar e tentar desenvolver pensamento crítico é fundamental. Educação é libertadora e hoje com democratização dela pelo meio digital se torna mais ainda. Então esse sempre é o caminho.”, diz Daniela.
Sobre o papel da tecnologia na manutenção do racismo na comunicação, Daniela dá um exemplo relacionado à autora Simone Browne, em seu livro “Dark Matters: On the Surveillance of Blackness”, publicado no ano de 2015. Browne narra sua experiência ao tentar consultar em arquivos do governo americano dados sobre Franz Fanon (1925-1961), acadêmico e teórico de pautas raciais. Ele, que desenvolveu estudos ligados justamente a vigilância de corpos negros pelo estado, teve seus arquivos anexados pelo FBI e CIA negados à escritora, que fez o livro após se deparar com o injusto impasse que sofrera — haja vista Fanon não se encaixar em nenhuma restrição ao acesso de informações determinado pelo país.
Browne relaciona no livro que o ato da proibição à pesquisa e a espionagem de dados de cidadãos pelo governo americano — e por qualquer país — se configura como uma prática de “nova escravidão”, mais silenciosa mas que ainda assim coloca personalidades negras de diversas vertentes: cantores, filósofos, escritores, atores, sob vigilância a todo tempo. Além disso, o principal ponto vai ao encontro sobre a que a tal vigilância serve, para perpetuar atitudes discriminatórias, justificadas como “controle” a tais pessoas, que supostamente estão “propensas a causarem insegurança nacional” na égide racista exemplificada pelo governo. Com os tempos tais iniciativas foram se alterando, e hoje em dia a principal delas pode ser atribuída ao uso das IAs (inteligências artificiais) de reconhecimento facial.
Contudo, a escritora — e Daniela, na aula ao explicar do que se tratava o livro — denota que tal espionagem é intrínseca à época da escravidão e que, por isso, é um erro atribuir tal prática somente aos tempos atuais.
“Ela [Browne] fala no livro sobre como essa espionagem, essa vigilância vem de uma lógica diretamente escravocrata. É importante ressaltar isso para não atribuir somente isso a algo atual. Essa vigilância ainda aumentada para perpetuar práticas racistas, como prisões a negros inocentes, mortes, chacinas em ruas, e afins, vem de sempre, ocasionada na lógica pós-Guerra de Secessão de que os ex-escravizados, que eram, claro, os negros, tinham que ser vigiados constantemente pois eram seres menores, propensos a causar desordem, baderna, morte. E assim se tornou propenso esse pensamento. Com a negação dos documentos de Fanon, deu um ‘click’ nela [a autora], que logo desenvolveu um paralelo sobre justamente o que ele estudava em vida e correlacionou isso com não só a vigilância que ele sofreu, mas com a negação desses documentos de acesso à vida dele. Pois para o governo americano, e para qualquer um, não bastava vigiar e estigmatizar, era para proibir arbitrariamente que qualquer um acessasse o que eles viram daquela pessoa, para não ‘plantar a semente’”.
Nisso, a doutora também acrescentou como a comunicação racial do Brasil e dos EUA é marcada por tais questões. A acadêmica e especialista também ressaltou a importância de debater tais assuntos no mundo atual, considerando a tecnologia como um chamariz para ideais que temos que lutar, seja claro, para tornar o mundo menos racista ou mais justo para causas e grupos menos favorecidos historicamente no todo.
“É importante a gente enxergar que com esse exemplo do governo, da vigilância, com as questões das grandes companhias, ligadas a big techs e afins, a relação da percepção e comunicação racial entre Brasil e EUA é marcada por esse viés imperialista de análise por parte dos americanos. E é tão intrínseco que isso entra até em alguns afroamericanos quando se analisa perante o Brasil, que tem uma conjuntura racial e de enfrentamento a racismo ligeiramente distinta. A discussão não deve ser sobre só isso. Claro, perceber as distinções do racismo perante povos latinos é fundamental, mas o ponto é outro. É perceber os pontos de intersecção entre essas relações dos americanos brancos para os afro-americanos do que dos americanos e do resto do mundo com os brasileiros, latinos e afins. E é trabalhar para aprimorar esse debate e afunilar essas diferenças, melhorar tais pontos. E por isso conversar é tão importante. Debater e refletir. Não só para tornar um mundo menos racista, mas tornar um mundo melhor para todo mundo, todos os grupos menos favorecidos em todos os sentidos.”
A excelente aula também contou com vídeos e ilustrações, além de espaços para debates com alunos, algo feito pela acadêmica a fim de tornar a experiência interativa e, principalmente, pouco monótona para falar de um assunto tão complexo e, ao mesmo tempo, importante. Daniela foi extremamente bem sucedida no que fez, arrancando elogios unânimes entre os presentes no encontro online, ocorrido em um dia caótico de chuvas e muitos transtornos metereológicos.
A próxima aula do curso, que continuará até julho, contará com a presença de Rosane Borges, jornalista, doutora em Ciências da Comunicação, professora colaboradora na Colabor (ECA-USP), pesquisadora nas áreas de comunicação e colunista, além de atuante em diversos outros projetos. Ela comandará o encontro com a seguinte temática: “Diversidade de Gênero: Um olhar sobre as mulheres no mundo da comunicação”.
A aula busca analisar o papel das mulheres ao longo da história da comunicação, compreender os estereótipos de gênero presentes na mídia e refletir sobre a importância da inclusão e representatividade feminina em posições de liderança na área. O encontro será transmitido pelo canal Extensão UFRJ do YouTube, no próximo dia 5 de abril, às 13:30 da tarde pelo horário de Brasília.
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