A aula, além de traçar um panorama histórico da atividade jornalística desde o século XV até atualidade, exemplificou o impacto das distinções da comunicação europeia em comparação à sul-americana e mostrou características próprias latinas da mídia antiga e contemporânea
Foto: Divulgação.
Foi realizado na última sexta-feira (15), o segundo dia do curso “Diversidade e Inclusão + Outros Formatos no Jornalismo Pós-Digital”, coordenado pelo Jornalistas Pretos em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro. O projeto, que se iniciou na última semana — tendo a presença de Luciana Barreto (ex-CNN Brasil, atual TV Brasil) — e continuará até julho com patrocínios da Secretaria de Formação, Livro e Leitura (MinC), Consulado dos Estados Unidos com apoio da Cátedra de Comunicação da Unesco e da Universidade Metodista, recebeu Dennis de Oliveira, notório pelo seu vasto currículo acadêmico, para uma aula analítica sobre o processo de comunicação nas Américas.
Dennis, que é professor, jornalista, doutor em Ciências da Comunicação, coordenador do Centro de Estudos Latino-Americanos em Cultura e Comunicação (CELACC), vice-líder do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Alternativo e Popular (Alterjor) e atuante em diversas outras áreas, trouxe um panorama histórico da comunicação nas Américas em diversas vertentes. Além de pontuar e elaborar as características próprias latino-americanas no processo comunicativo, o estudioso ressaltou as distinções de protagonismo em narrativa global que tal processo sofreu ao longo das décadas e séculos em vista de outras partes do planeta — a européia, em específico.
Dennis começa a aula tratando das chamadas “transformações institucionais”, que começaram a ocorrer entre os séculos XV e XVI, e como elas ajudaram a implementar um processo mais ativo e otimizado de comunicação, em diversas frentes: na interação social, pelas relações do indivíduo com seus semelhantes até a maneira do ser humano se conectar com o mundo a seu redor. Este último ponto, em específico, foi o que deu o pontapé ao processo gradual de uma noção comunicativa “especializada”, que daria origem ao jornalismo. O especialista também ressaltou nesse início a distinção dos conceitos de esfera pública e privada, além de logo explicar como já nesses estágios “embrionários”, a prática midiática ou jornalística — que nem possuía tal denominação — já apresentava que ambas esferas futuramente se fundiriam em um debate único, de cunho comercial.
“O conceito de esfera pública se inicia com esse interesse do encontro, motivado pelo comércio até. Isso é muito interessante pois se a gente analisar o conceito de esfera pública, ele é inspirado no Ágora grego — praça que as pessoas se encontravam para debater questões de vontade e interesse público. A primeira experiência da democracia, como dizem. Nessa Ágora também havia encontros do mercado junto aos públicos. E percebemos, também, como não há uma distinção de esfera pública apartada de uma dimensão negocial comercial da relacionada ao interesse público. Claro que a gente vê com o tempo os interesses de uma esfera privada se unindo mais fortemente a esses, e vemos como se perde esse conceito de representação apenas coletiva do público. Mas, é importante a gente ter em mente como o conceito da esfera pública, que permeava esse processo naquela época, não era totalmente afastado de interesses comerciais.”
O especialista explica como, em suas palavras, “arranjos institucionais” somados à difusão do jornalismo passaram a representar justamente a totalidade do modelo ideológico e de produção capitalista neo-liberal européia logo depois. Apesar de ressaltar que tais “arranjos” originalmente estariam presentes dentro da esfera pública, partes integrantes e importantes que deveriam ser aparentes neles, como as demandas e vivências reais de grupos sociais, acabam preteridas nas linhas editoriais, escolhas de pauta e no que vai ser, efetivamente, o debate público. Dennis faz questão de mostrar que embora, claro, não se deva “demonizar” por completo o processo de comunicação jornalística a partir do século XVIII, tem de se pontuar que a atividade segue, até os dias atuais, interesses capitalistas e de mercado, seja em grau reduzido ou substancial, dependendo dos veículos e redações ao redor do globo.
“O papel do conceito de ‘democracia’ neo-liberal não pode ser confundido com o desejo de registro de razoabilidade e representação do que é a sociedade em todas suas camadas. É claro que isso foi uma base que veio de lá atrás e foi uma pequena fonte à esse modelo, mas hoje, esse conceito se baseia em demandas oriundas do capitalismo, da comercialidade, do que vende e é lucrativo ao mercado. Então esses meios de comunicação, ou a mídia, que é esse instrumento de disseminação de notícias, acaba virando esse produto capitalista. Então não há como a gente separar isso. É claro que a gente pode encontrar mídias focadas em atividade não-capitalista, mas indiretamente. No geral, não é assim. A base dela é isso não por ela querer ser uma indústria empresarial necessariamente, mas sim por ela ser produto de uma ordem social que prioriza a comercialidade em tudo. E nisso, a retratação social, também entra nesses interesses.”
Em seguida, ele ressalta que o principal ponto de empecilho a um jornalismo participativo e, principalmente, representativo, global, em mostrar culturas, demandas sociais e grupos fora Europa — especialmente latino-americanos, foco da aula — se deu pela intervenção maior destas demandas neoliberais, surgidas juntas à Revolução Industrial. Dennis exemplifica que além delas coordenarem as pautas por interesses da elite, que comandava o mercado, acabavam reforçando a cadeia de um conceito exemplificado pelo jornalista e doutor: o da Colonialidade de Poder, que representava cinco tipos de controle que tais elites geográficas, mercadológicas e financeiras — européias, industrializadas e ricas — exerciam para não apenas atenuar, mas extinguir a representação no debate público de populações não pertencentes à este modelo.
“Essa matriz de colonialidade de poder é exatamente o modelo-chave de como é comunicação nas Américas. Essa colonialidade foi construída exatamente pela soberania da Europa no poderio econômico internacional. Esse poderio veio através de colonização, extinção dos povos indígenas, suas terras e exploração de mão de obra latina e originária. Com isso, nas diversas áreas de controle [as cinco do estudo de colonialidade: economia, autoridade, recursos naturais, gênero e sexualidade e conhecimento] é esse domínio que conta. Pela gigantesca economia, esse modelo se universaliza. E se universaliza, claro, na comunicação, que só serve às demandas, estilos de vida e de sociedade europeias.“
A comunicação nas Américas, especial, claro, latino-americanas vão se desenvolver como uma espécie de estímulo de sobrevivência, pois como o modelo de jornalismo e comunicação é pautado pelo global, e o global se restringe à Europa, essa comunicação latina e americana cresceu como uma tentativa de moldar e mostrar no debate público outras vivências, povos e realidades, que a grande mídia jamais se interessou. Ainda que, claro, dentro disso, modelos europeus de se moldar a comunicação tenham se entranhado no processo comunicativo das Américas. Mas aí, claro, é uma outra vertente e discussão, mais de modelo jornalístico, do que necessariamente uma crítica a falta de apontamento e direcionamento de áreas geográficas extra-Europa.”
Ele complementa dizendo que, apesar do termo — de cunho acadêmico — se referir a um período em que boa parte das nações da América Latina eram colonizadas, o processo se arrastou mesmo depois de suas independências e estão até hoje. Todavia, Dennis pontua que a comunicação nas Américas vem se fortalecendo com pontos de avanço no que ele chama de “desprendimento ideológico colonizador”, a priori continental, e aos poucos, global.
“Esse termo de ‘colonialidade’ embora nos estudos seja ressaltado daquele período — século XVII, XVIII e XIX — a gente pode interpretar que criou um padrão que está até hoje. Da Europa para os latinos, claro, mas de certo grau dentro das próprias Américas, embora de uma outra maneira. Mesmo depois até das nações terem se tornado independentes, não colonizadas. O país fisicamente pode não estar, mas estruturalmente o continente e todo o povo está. Há avanço e isso tem que ser reconhecido e celebrado, mas ainda há muito que lutar. A importância de uma comunicação forte nas Américas para além de um estilo europeu não é só de pluralidade, mas sim de equidade e demonstração do que deve ser o debate público, formado pelo povo mais presente nas pautas, assuntos e integralmente dentro da ação, do processo.”
O estudioso e doutor também disse que o processo eurocêntrico de comunicação também é, sem dúvida, intrínseco aos preconceitos sociais, de gênero e raça. Ele ressalta que a “colonialidade” ideológica que guiou — e guia — os meandros comunicativos, midiáticos e jornalísticos se baseiam nos estereótipos e discriminações.
“Essa colonialidade vai ao encontro justamente desses pontos de controle. Social, gênero, recursos naturais, economia e autoridade. Não há um entendimento de que as demandas das pessoas negras têm valor, não há um entendimento de que as demandas das mulheres têm um valor, das minorias, dos povos originários. Pois essas pessoas não eram e não são humanizadas pelo processo, não eram e não são vistas como parte integral de análise. E aí que mora todo o problema. Se essas pessoas, que são base da nossa sociedade, não devem ser representadas ou pautas na comunicação, quem será? E romper com essa lógica colonializada é romper com esse pensamento desumanizador, intrínseco a esse poderio europeu e essa noção neo-liberal, que muitas emissoras e veículos ainda têm.”
Foto: Reprodução — Dennis (em baixo) com Marcelle Chagas (coordenadora do curso; à direita) e Stefanie (esquerda; intérprete de libras).
Para além da temática, o especialista abordou historicamente de maneira aprofundada o processo interno, da América Latina, em separado à sua relação com o resto da Europa. Neste momento da aula, Dennis também aproveitou para traçar um cronograma de como a mídia se estabeleceu no território latino-americano, pontuando suas regulamentações na primeira metade do século XX e dos reveses sofridos pelo jornalismo com as ditaduras, vértices diretos do interesse imperialista — parte da teoria da “colonialidade de poder”, vertida agora de maneira distintamente empírica, dentro das próprias nações dos áreas sul e centro-americanas.
Logo depois, o doutor e acadêmico pontuou como os monopólios midiáticos se estabeleceram na América Latina a partir deste período e de que maneira eles se mostraram soberanos com a política neo-liberal adotada a partir das redemocratizações. Dennis destacou que, pelo menos, nos últimos 30 anos, o cenário de mídias plurais dentro de diversos países sul-americanos ou centro-americanos pouco esteve em voga, com uma grande concentração de únicos grupos de comunicação exercendo posição muito acima de concorrentes. Um levantamento, mostrado pelo próprio durante a aula, mostra bem isso.
Com o advento da internet, o especialista chamou a atenção para o papel da “desterritorialização” dentro desse processo de monopólio, que aqui, claro, passa a estar em nível global. Dennis relata que a digitalização da comunicação permitiu que mesmo com uma perda de influência de veículos e estilos jornalísticos pró-Europa na mídia tradicional — tv, jornais ou rádio (algo que ele inclusive ressalta não ser de tão impacto assim) —, grandes detentores financeiros passassem a migrar seus investimentos para plataformas de redes sociais, que, a priori, são vistas como ferramentas de facilitação à conexão com as pessoas mas que no fundo servem para difundir os interesses dessas elites abastadas, que sempre comandavam (e comandam) o espectro midiático e de debate público até então.
O acadêmico fala como isso é nítido, principalmente, na alta propagação de fake news e discursos de ódio que favorecem determinadas personalidades e grupos de dominância social e financeira.
“Conforme mais vamos usando e nos tornando dependente das redes sociais, mais delegados a elas nós estamos. E com isso, delegados a elas ditarem o que nós vamos ou não vamos consumir, digerir, aceitar. E quando terceirizamos isso, damos o poder delas decidirem o que elas quiserem como válido e agregador. E aí que eles acabam validando as fake news a rodo, o discurso de ódio, o discurso fascista, o discurso até nazista. Porque não só é do interesse de boa parte desses detentores dessas redes pois vão ao encontro a narrativa que eles querem, mas também pelo lucro, pelo financeiro. Se você bane, são menos usuários, menos usuários, menos horas de uso, menos horas de uso = menos lucro. E no fim é o lucro, o comercial que importa. Não vale se esses grupos estão se valendo das redes para difamar, mentir, caluniar e destilar ódio, vale que esses discursos lucram as plataformas.”
Em adição, Dennis ressalta o poder que essa “desterritorialização” digital e soberania das redes sociais têm no mundo: de tornar as narrativas do debate público comunicativo — e nisso, claro, o jornalismo está intrínseco — focadas apenas no que vivemos, em nossos gostos pessoais e opiniões, quebrando o efeito de lidarmos com outras realidades e elaborarmos uma visão crítica e racional sobre todo o mundo que nos cerca.
“Há uma outra questão relacionada, a do algoritmo. Dele só recomendar o que a gente vê e gosta, baseado nas nossas pesquisas e interesses. Para além de ser claramente uma questão de controle, de vigilância ao que estamos fazendo, o que por si só já é extremamente grave, há uma questão de formar uma esfera que só nos torne dependentes dela, incapacitando o diferente, o novo, os outros primas. Isso entra no conceito do comercial, lembra? E se como ele mesmo com as modificações dos séculos se mantém ativo. Se o comercial estava ligando estritamente o vivencial de uma elite, o comercial também pode estar ligado ao que a rede nos mostra ser próximo de nós, baseado na vigilância. E isso cria a espiral: estamos com essa rede que me recomenda o que eu gosto, as usamos por isso, e assim ela recomenda não só o que gosto mas o que ela acha que eu possa gostar ou engajar de alguma forma, mesmo que seja para criticar. E assim o consumo continua, a visibilidade continua e o lucro segue girando. A comercialidade fica intacta.”
Por fim, o estudioso provocou nos presentes um interessantíssimo debate: de como enfrentar as dinâmicas de opressão dessa matriz colonial de poder no mundo, como percebê-las, do que absorvemos dessa matriz em nossa forma latina de fazer comunicação e de ser parte de tal processo e, claro, de como podemos evoluir para sermos e fazermos uma mídia plural, contempladora e mais íntegra. Esses pontos não foram e nunca serão fáceis de compreender e serem definitivamente respondidos e somente o tempo e nossa relação com o mundo globalizado, dentro e fora da internet, poderá nos indicar uma resposta ainda mais assertiva na temática, bastante mutante e complexa.
Contudo, o tempo se constrói do hoje, e atualmente termos um debate levantado de maneira tão crítica, examinadora e cirúrgica como vem sendo feito — não só por Dennis, claro, mas por todos nós, profissionais da comunicação racializados e latinos — já nos mostra que as discussões futuras a respeito do tema estarão cada vez mais bem dirigidas, esclarecedoras e com argumentos contundentes. Como tem de ser.
A próxima aula (22) contará com a presença de Daniela Gomes, professora, doutora, palestrante, mestre e atuante em várias frentes acadêmicas. Ela, que entre algumas ocupações é docente em Estudos Africanos na Universidade Estadual de San Diego e mestre em Estudos Culturais, trará como terceiro dia de curso a seguinte temática: “Um olhar diaspórico da comunicação entre o Brasil e os Estados Unidos”.
A aula visa explorar as dinâmicas comunicativas entre o Brasil e os Estados Unidos dentro do contexto diaspórico, suas influências nas trocas culturais e na construção de identidades de ambos países, além de analisar as diferentes formas de comunicação presentes nas diásporas brasileira e americana, considerando fatores como língua, mídia, tecnologia entre outras características. O encontro pode ser conferido via YouTube ao vivo, com a transmissão se iniciando às 13:30 pelo horário de Brasília no canal da Extensão UFRJ, que transmite as lives.
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