O foco por parte da jornalista e apresentadora esteve baseado no seu livro “Discursos de ódio contra negros nas redes”; curso se iniciou em março e encerrará em julho
Começou nesta sexta-feira (8), o primeiro dia de uma iniciativa coordenada pelo Jornalistas Pretos junto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): o curso “Diversidade e Inclusão + Outros Formatos no Jornalismo Pós-Digital”. O projeto, patrocinado pela Secretaria de Formação, Livro e Leitura (MinC) e pelo Consulado dos Estados Unidos com apoio da Cátedra de Comunicação da Unesco e da Universidade Metodista, como o próprio nome sugere, visa ampliar o debate de representatividade e o combate à desinformação. Além de, claro, outros inúmeros assuntos correlacionados aos desafios que o jornalismo racializado enfrenta e enfrentará em um mundo cada vez mais “hiperdigitalizado”.
Ao todo, o curso compreenderá quatro meses de atividade, com uma aula por semana, cada uma abordando justamente aspectos da temática. A inaugural contou com a presença de Luciana Barreto, jornalista, apresentadora e mestre em relações étnico-raciais. Neste primeiro dia, a também atual âncora da TV Brasil e ex-CNN Brasil, dissecou pontos importantes presentes no seu livro “Discursos de ódio contra negros nas redes”, publicado em 2022. Além de falar sobre a iniciativa que levou à feitura do projeto literário, Barreto exemplificou muitas das diferenças de tratamento de notícia na mídia tradicional, que amplificam e incentivam a cultura “hater” racista nos meios digitais.
A jornalista iniciou a aula pontuando o quanto a cultura de ódio digital contra negros, que as pessoas a priori pensam ser alimentada por pessoas comuns, acaba sendo uma consequência direta da falta de representatividade de pessoas pretas nas redações. Barreto ressaltou também como o viés dado a determinadas coberturas suscita tal prática.
“Quero tratar sobre essa questão [da cultura de ódio digital contra pessoas negras], tratar de alguns aspectos relacionados a isso aqui, mas também atentar o quanto esse tema chega no conteúdo da notícia, da maneira que ele é passado e quem o está passando, que é uma maioria branca. Porque infelizmente a gente não avança como democracia, em dados de diversidade e inovação no jornalismo e em combate a essa prática de ódio, se a gente tem a fonte de tudo, que é uma redação, embranquecida. Há um tokenismo, de ter um ou outro apresentador ou redator negro e isso ser o ‘exemplo’ da diversidade.”
Ela também ressaltou a importância não apenas numérica, claro, mas de como tais profissionais racializados devem ter espaço pleno para emitirem opiniões e serem parte integral de um processo e, subsequente, debate noticioso.
“Que não apenas seja uma questão de ter, mas deles fazerem. De termos apresentadores negros que possam decidir, emitir opiniões, escolher a pauta, dizer os rumos da notícia. Hoje voltei para o jornalismo público, onde sou apresentadora e editora-chefe. Eu não tinha pensado até então sobre isso, mas agora venho notando a importância da gente ter isso. A importância de termos alguém olhando para a notícia, o conteúdo que vai ao ar, que chega, para abordagem, entendendo o que isso representa de prestação de serviço e no valor de informação, equidade e respeito ao Brasil. De respeito ao telespectador, a um ouvinte ou leitor. É por aí que a gente cria uma raiz a como as pessoas podem reagir àquela notícia.”
Foto: Reprodução – Luciana (em baixo) durante a aula junto à Marcelle Chagas (direita; coordenadora do curso) e a intérprete de libras, Thamires (esquerda)
Na aula, Barreto também falou sobre o projeto Teaching Tolerance — localizado no Alabama, Estados Unidos, e que inclusive possui um museu — como um outro ponto que a fez pensar na temática da cultura de ódio perante negros nas redes. A jornalista aproveitou para ressaltar o que fez com que ela se conectasse tanto com a iniciativa, fundada em 1991 e que foi visitada pela mesma na metade da década de 2010, um período bastante polarizador nos próprios EUA e, principalmente, no Brasil, que vivia pleno auge da Operação Lava-Jato e o apagar das luzes do governo Dilma.
“Esse projeto é incrível e foi outro ponto-chave pra mim. Eles têm um museu, um espaço físico que mostra a história recente dos Estados Unidos, para entender e mostrar a história de ódio daquele país e quem aquele ódio mais prejudicou: os nativos, os afro-americanos. Lá os professores podem levar os estudantes e recebem um material de apoio de dinâmicas de incentivo ao respeito e a tolerância. Lá há um centro de apoio jurídico, inclusive, para vítimas de discurso de ódio. Fui lá em 2016, há oito anos. Era o último ano do governo Obama e os EUA vivia uma crescente onda de intolerância e discursos do tipo, contra todo tipo de minoria, e já era uma preparação das eleições que elegeriam Donald Trump, meses depois.
Era um período extremo de ódio por lá. E lembro que aqui no Brasil a gente vivia um período muito tenso de polarização também. 2016 foi o impeachment da Dilma Rousseff e entre 2014 e 2015, com a Lava Jato, era um momento complicado da política brasileira. Por aquilo, assim como lá, catalizado pelas redes sociais, a gente já via surgir ali o que piorou depois. E acho que a semente de um estudo mais aprofundado nessa questão se despertou em mim mais ainda naquele instante, começou a se formar muito ali.”
Barreto também fez um panorama da cultura “hater” racista historicamente até a importância de políticas de ação afirmativa e vieses distintos dentro dos meios de comunicação — como mencionado anteriormente — no combate ao discurso de ódio contra o negro no Brasil. A jornalista usou exemplos de como tais questões são parte de um erro muito latente no imaginário popular amplo: de que o Brasil e o mundo vivem uma democracia racial.
Ela também ressaltou na palestra a importância do recorte de gênero na questão, salientando que 81% das vítimas de discursos de ódio são mulheres negras, o que aumenta o valor do viés interseccional ao analisar a temática. Barreto pontua, principalmente, que as manifestações ocorrem, sobretudo, no caso das mulheres quando as mesmas demonstram estarem em situações de poder, seja financeiro e na conquista de um bem material ou simbólico de bastante cobiça.
Em boa parte das vezes, a jornalista também frisou que tais ataques ocorrem na simples demonstração de autoestima por parte das mulheres, em posts nas redes sociais ou no fato de assumirem cabelos cacheados ou crespos.
“Percebam que o hater racista ele tem um alvo muito definido: o de achar que você merece apenas estar em um lugar que ele acredita que você deva estar. Em um exemplo mostrado, a respeito da Miss Brasil ser negra, a hater diz que ela tem cara de ‘empregadinha’, enquanto a outra diz que ela deveria morrer para ceder espaço à candidata que a hater torcia, e que perdeu. Ela não apenas se contenta em despejar a frustração, mas sim de dizer onde você deveria estar e porque é errado estar onde você está e conquistar o que você tem. E é ele quem quer determinar o lugar que você deveria estar.
Durante muitos anos pessoas negras eram representadas restritamente em papéis de servir, de estarem literalmente apenas na cozinha. Isso vem mudando e as pessoas estão em outras áreas. Mas ainda assim há uma grande parte dessas pessoas na posição de empregada e subserviência, infelizmente, mas a todas que romperam esse ciclo é reservado o dever de serem postas lá novamente, pois é o único lugar que os haters racistas as vêem e acreditam que mereçam estar. Isso tudo é uma construção social.”
Ela logo ressalta que o combate ao discurso de ódio deve ser incentivado a fim de atenuar efeitos supremacistas, não só raciais, claro, mas de ordem social nas mais diversas questões, relacionadas a padrões de gênero, corpos, entre outros. Contudo, Barreto pontua que o racismo ainda assim será mais salientado dentro desses padrões.
“É importante a gente evitar o discurso de ódio para qualquer coisa, principalmente. Ele, de maneira implícita ou na maioria das vezes explícita, compreende a ideia de eliminação. Isso fica nítido quando mostramos o exemplo da Miss Brasil, as pessoas queriam não só eliminá-la daquele lugar, mas eliminá-la até mesmo da vida, só para que ela não esteja num lugar ou posição que o hater acredita que ela não mereça. Isso ocorre em diversas áreas, mas na questão racial ela mexe com uma estrutura que apoia a eliminação de corpos negros, vidas negras de maneira direta. É uma desumanização em prol de um padrão.
Tiveram diversos casos, como o de invasões em comunidades [aquela do Alemão, por exemplo, em 2011], onde nas transmissões ao vivo as pessoas logo vão dizendo: ‘por quê não atiram nessa gente toda logo?’, achando que é simples assim e que não há inocentes e vidas, famílias no meio desses conflitos. Por isso ressalto que o combate ao discurso de ódio e essa padronização de onde pessoas pretas devem estar está junta no campo da comunicação que as redações de maioria branca passam, o que elas botam. Daí, temos outros caminhos também a percorrer para melhorar essa perspectiva, que é muito enraizada e complexíssima.”
Ela complementa, por fim:
“Estamos em um sistema muito estruturado. Muito mesmo. E quando falo isso, é de um sistema de quase ou mais de cem anos em alguns veículos. A sensação que eu tenho é que alguns veículos estão dispostos em ceder e voltar, ceder e voltar, nesses pontos de avançar no debate. Um exemplo que trago no meu novo livro, inclusive, o ‘Tempestade Perfeita’. O caso George Floyd mudou a cobertura no mundo todo, em 2020, ao colocar pretos na linha de frente para participar mais. Num país como o Brasil, onde tínhamos e temos a maioria que se auto-declara preta ou parda, passamos a colocar mais na frente o protagonismo de jornalistas e âncoras negros. Todos os veículos fizeram um mea culpa. Olhem para hoje, novembro ou dezembro do ano passado, o presidente Lula convocou diversos jornalistas para um café da manhã. Cada veículo mandou o seu, e praticamente todos os enviados eram brancos. Isso é uma estratégia estrutural que se mexe um pouco para lá na frente voltar ao mesmo lugar. E a chance da gente movimentar essa estrutura de maneira definitiva, aos poucos, é pouca. Mas se a gente não se levantar, encorajar a tentar mudar a maneira de comunicar, as chances vão ser menores ainda, quase nulas diria. Por isso é que é importante nos atentarmos a isso. Basicamente é isso. E nós como profissionais de mídia temos mais que nunca mantermos nossos olhares para essas questões, que sempre vão ter de serem relevantes.“
A presença de Luciana foi extremamente elogiada pelos presentes, que destacaram sua capacidade de mostrar a profundidade da temática da cultura digital de ódio racial sob diversos prismas. Na próxima aula (15), o curso contará com a presença do professor Dennis de Oliveira, que explorará a diversidade da comunicação nas Américas, traçando um paralelo de como diferentes culturas moldaram as práticas comunicativas no continente com os pontos-chave do modelo midiático e jornalístico americano.
Neste segundo encontro, Dennis — que é jornalista, professor, doutor em Ciências da Comunicação, além de coordenador do Centro de Estudos Latino-Americanos em Cultura e Comunicação (CELACC) e atuante em diversas outras áreas acadêmicas — discutirá também dentro da comunicação nas Américas semelhanças e diferenças em distintos países e regiões. O pesquisador abordará, principalmente, neste tópico, o impacto das culturas indígenas, colonização e os inúmeros movimentos sociais e avanços tecnológicos na construção deste processo comunicativo.
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