Relatório divulgado pelo Monitor de Comunicação Da América Latina (LCM) mostra dados importantes sobre a perspectiva de diversidade dentro de organizações das comunicações; a pergunta que fica é: o que podemos depreender destas informações?
Não é de hoje que o assunto da diversidade na comunicação existe e impera diversas discussões, pesquisas, análises e teses mundo afora. Importância do mote à parte, é sempre interessante e conveniente analisarmos se o assunto não é só posto à debate, mas se ele é definitivamente praticado e, sobretudo, bem visto e avaliado no ambiente que é centro de um efervescente certame. Com base nisso, trazemos uma pergunta: qual o futuro que essa temática na comunicação efetivamente terá e tem hoje?
É uma pergunta complexa, se analisarmos o fato de, em tese, não termos como mapear o pensamento das pessoas por completo acerca do assunto. Isso se, recentemente, pesquisas em torno do tema não tivessem surgido, o que não ocorreu. Uma delas, em especial, foi divulgada em dezembro último pelo Monitor de Comunicação da América Latina (MCL). O relatório, que inclui diversos dados interessantes e profundos sobre temáticas voltadas à impressão de profissionais na comunicação, mostra bem alguns pontos interessantes de análise a respeito de como é visto, avaliado e almejado todo o entorno do debate da diversidade na área.
De acordo com o MCL, apenas 20% dos departamentos empresariais de comunicação em toda a América Latina consideram discussões internas e políticas de aprimoramento voltadas à área de diversidade, equidade e inclusão (intitulada DEI) como pontos de estratégia-chave para os próximos anos. Embora alguns países como o Brasil, Porto Rico e Chile sejam mais ativos nas implementações de DEI, outras nações como Venezuela, Peru e República Dominicana se mostram tímidas perante este avanço. A pesquisa também revela que mais de 80% dos profissionais consideram o departamento de DEI crucial para manter a confiança dos funcionários nas organizações (tanto as que trabalham apenas em comunicação quanto de outros setores mas correlacionadas) e dos clientes para o serviço e a empresa que eles “consomem”.
O extenso relatório também mostra alguns outros pontos, como a importância de um elenco de funcionários plural para a efetividade de uma política DEI, algo que não se sucede com frequência. Outros fatores são intrínsecos à isso, como a baixa presença feminina e negra (se comparada à masculina e branca, guardadas devidas proporções) nas organizações e equipes de comunicação.
Baseado nisso, o Jornalistas Pretos foi atrás de tentar ver um indicativo para o que está acontecendo e perspectivas futuras para a comunicação. Conversamos com a pesquisadora, professora de comunicação e jornalista Maria Lúcia da Silva. Ela, coordenadora do Núcleo de Estudos Étnico-Raciais (NERA) e doutora em Educação, em entrevista para o site falou sobre determinados pontos acerca da importância da diversidade para a área comunicativa em uma conversa bastante esclarecedora.
Logo de início, ao ser perguntada sobre o futuro das comunicações diversificadas e qual papel que elas, sobretudo em um recorte racializado, exercem hoje no Brasil e no mundo, Maria Lúcia revelou estar otimista. A doutora explica o que ela considera impactos positivos a respeito de um incentivo, que ela credita estar ligado às redes sociais, além de demandas de grupos em se verem representados e tendo suas visões de mundo consideradas nos mais distintos polos de debate na internet e, consequentemente, ao redor do planeta.
“Hoje vejo que há e houve uma abertura para diversidade. A comunicação é um canal do tempo que ela vive. E ela vive nas redes, paralela ao mundo conectado e isso propicia uma vontade maior de registrar o que esse mundo quer ver e reivindica. Nisso, há essa comunicação plural, pessoas de determinados grupos querendo se ver, se impondo com o desejo de terem suas demandas faladas, denúncias feitas e se verem. E abriu-se uma janela de oportunidade para todo o tipo de gente; nós negros, principalmente, de estarem diante das câmeras de televisão, das redações, etc. Eu não sei exatamente a quantidade exata, mas é inegável o aumento. Dados da Fenaj, USP, grupos de análise da Roseli Fígaro, etc., mostram esse crescimento da diversidade. De nós negros, principalmente, dentro dos veículos.”
Ela logo em seguida ressalta como esse crescimento se iniciou no âmbito acadêmico. Lúcia, nesse momento, relata o quanto para ela, como comunicadora e mulher negra, foi importante esse maior engajamento em torno da temática nos trabalhos e tarefas dentro do ambiente estudantil.
“Vivencialmente, na sala de aula, eu senti muito isso, dessa tendência mais diversa. A partir de 2013/2014, principalmente, eu fui vendo chegar mais. A partir de antes até, um pouco, por volta de 2008 e 2009. Nos vestibulares, na sala, nos trabalhos acadêmicos, TCC, alunos bem mais plurais, tantos mas temáticas de seus assuntos, quanto vivencialmente, negros. Quando comecei dar aula em 1994, via poucos alunos negros, alunas mulheres também eram raríssimas, e com os anos foi crescendo, mas bem lentamente. E hoje já há um número muito maior, principalmente de alunos negros. Isso foi algo que foi me deixando cada vez gratificada, por me ver ali também e por ver que a diversidade estava se formando vivencialmente, não só dentro de um debate de palavras e assuntos. Hoje as equipes estão buscando bem mais isso; vejo na TV local aqui onde moro [Espírito Santo] e tinha um ou outro aluno de comunicação meu na equipe trabalhando e racializado, hoje já tem vários. Alguns na frente das câmeras e outros por trás. Mas no fim, todos fazendo a coisa andar. É muito bom isso.“
Em seguida, a pesquisadora também reflete não só como a diversidade no processo comunicativo atual envolve não só a questão “vivencial” sobre quem a faz e rege, mas também seu impacto em todo o ciclo de feitura da área hoje. Lúcia credita o protagonismo das redes sociais nisto, algo que a doutora enxerga como positivo e que ajuda a aprimorar ainda mais a comunicação, a tornando moderna e plural de agentes.
“No geral, acho que para além da representatividade, houve uma melhora na questão das equipes. Hoje em dia com as redes sociais, as pessoas querem não apenas se expressar, mas se enxergarem como partes do mundo. E sobre o que elas vivem. Muito se fala da veiculação, mas pra ter veiculação, precisamos de denúncia. E determinadas denúncias, antigamente, não chegavam nas redações. Hoje elas chegam nas redes antes e por lá, pautam o que a grande mídia diz. As equipes jornalísticas hoje sabem dos problemas que as pessoas que estão denunciando passam e do imediatismo que elas querem expor a situação, e tornaram o processo de comunicação plural, diverso não só em quem passa aquela notícia pro espectador, mas na forma de captar.”
Ela em seguida ressalta o poder das denúncias de racismo neste novo molde de comunicação, refletindo inclusive, que, se não houvessem as redes sociais na equação do processo comunicativo hoje, queixas, revelações e boletins de crimes raciais teriam visibilidade infinitamente menor em veículos tradicionais.
“Denúncia de racismo ou injúria racial não chegavam nas redações. E a socidade brasileira hoje tá denunciando, consegue gravar uma situação para expor, denunciar, mostrar o que tá acontecendo. Houveram casos recentes, como o do rapaz, lá no Carrefour ou do entregador de pizza, no RJ. Foram casos que pautaram redes antes de ir pra TV, rádios, sites, programas. Se isso repercute nas redes antes, o jornalismo tradicional tem que aprender a ver o que está acontecendo e também repercutir. E nisso as equipes estão se aprimorando. Acho que o movimento antirracista foi potencializado por esse processo. Ele já existia, mas se potencializou nisso. É cansativo essa repetição, mas ocorre, infelizmente, e temos que denunciar. Acredito que, por mais doloroso que sempre seja, de certa forma houve um ganho na exposição maior, pois antes acontecia do mesmo jeito e era silenciado. Hoje escancara-se o problema que a gente vive e precisamos combater”.
Apesar de reconhecer o processo do avanço da tecnologia — propiciado pelas redes sociais —, a pesquisadora possui ressalvas quanto ao futuro ultratech para o processo comunicativo e na sociedade geral. “Eu escrevi recentemente com meu colega Jean Gonçalves um artigo sobre. Eu acho que há questões de possibilidade para agregar. O uso dos dados para melhora de mapeamento para a saúde, infraestrutura, especialmente para a população preta periférica, vejo como um caminho, uma possibilidade. Mas tem determinadas questões envolvidas que vejo com muito temor, como o reconhecimento facial, por exemplo. Tenho medo pois é uma tecnologia de cunho abertamente racista, de imprecisão a partir de uma cor, que acha que é igual para todos. Eu morro de medo de ser pega por engano. Isso é péssimo. Precisa-se debater isso, muitas entidades já estão falando, mas é algo que para o futuro, principalmente com os avanços da IA, o mundo inteiro precisa ter um ativismo consciente disso. E tem outra questão: as grandes mídias vão noticiar o erro do reconhecimento, mas a retratação quando o equipamento se engana nunca vem na mesma velocidade, o que puxa também o problema para o processo comunicativo em si”, complementa.
Lúcia também respondeu sobre o papel da mídia não-tradicional no desempenho da diversidade na comunicação. Ao ser perguntada se enxerga um futuro mais plural no que diz respeito à credibilidade de veículos “outsiders”, a doutora se mostra otimista e orgulhosa. “Acredito que a pluralidade de veículos já é uma realidade. Hoje não se precisa pautar só pelo tradicional, alguns veículos “independentes” fazem um trabalho tão excepcional e de valor até maior. Admiro muito vários, o Alma Preta, o próprio JP, o trabalho do Geledés também é fenomenal. Tenho muita felicidade em ver. Isso mostra o poder da comunicação analítica. Um jornalismo que traz os fatos mas coloca o leitor para raciocinar em torno deles sob um viés particular, usando a verdade para isso.”, ressalta a acadêmica.
Por fim, ela também ressalta como não só a comunicação no jornalismo, mas também em outras áreas e equipes, vem sendo cada vez mais forte, ainda que longe do ideal.
“Uma coisa que acho admirável é que a comunicação hoje é plural, diversa, e atravessa as consultorias, os grandes staffs das redes também. Não é só o criador em si, é quem está por trás. A gente tem a Flávia Oliveira, do Uol, a própria Rosane Borges, os Publicitários Negros, a equipe da Rede Globo nos streamings. Além da gente ver maior presença preta e afins, toda a diversidade, não só negra, mas principalmente preta, vem de todo o esquema, com profissionais negros consultores, produtores de texto, roteiristas, idealizadores, e etc. É nesse meio corporativo e grupal que o movimento diverso se prolifera mais. E isso é lindo, maravilhoso. Ainda que estejamos longe do ideal, precisamos ainda mais de mais equipes assim, com olhares distintos contra o que sempre é imposto. Temos que avançar nisso em todo o Brasil, na Bahia, no Rio de Janeiro, etc. Com tudo que anda acontecendo na Bahia, principalmente, a gente tem que encorpar mais ainda esse debate e fazer mais profissionais plurais, pretos, que foram subjugados como marginalizados a vida toda, pro front. Mais que nós já estamos.”
No encerramento da entrevista, Maria Lúcia revela o que almeja e pensa para o futuro da comunicação e — sobretudo — de uma implementação da diversidade em seu processo. Ela revela estar otimista quanto a perspectiva nacional, e encoraja os leitores e espectadores a fazer a “retroalimentação” deste ciclo, consumindo autores e criadores de conteúdo fora do habitual e que ofereçam angulações sociais reflexivas distintas (baseadas, claro, em evidências e fatos) do que eles já recebem e têm de referência.
“Espero para o futuro mais comunicadores e jornalistas conscientes, pra ganharmos em muitos campos e ampliar esse debate mais do que já tem acontecido. Para além dos criadores que devem incentivar isso, os consumidores também devem. Procurar, no jornalismo e na vida, ler e consumir autores, produtores de conteúdo e jornalistas fora do habitual. Leiam obras, se dediquem a tentar pesquisar autores negros, mas também mulheres, LGBTs, e afins. Para ver outras perspectivas. Todo semestre encorajo e peço meus alunos pra levarem autores negros, e assim sucessivamente em outros tipos. Não para uma questão de ‘parcela’, mas sim de implementar, incorporar essas vivências e experiências de análise do mundo ao que a gente sabe e vê. Isso é o que enriquece a comunicação. E a aprofunda. Quanto mais profundo, mais fortalecido ficamos na hora de fazer debate sobre diversificar. E diversificar é isso.
Se teremos uma comunicação plural, inclusiva e mais libertadora, tanto nos processos jornalísticos quanto na criação de conteúdo em todo o mundo em um futuro próximo, isso é difícil de saber. Entretanto, cada vez mais dando o próprio passo, o Brasil vai tentando se fortalecer como um pilar desta luta, que ainda terá muitos rounds, golpes e reveses até chegar seu segundo final. A despeito desta constante, contudo, a iniciativa de lutar é o que faz o fim. E isto, já temos de sobra.
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