Kelvyn Araújo
Todos repararam e, sobretudo, sentiram nos últimos tempos “ondas” de calor imensas ao longo de todo o Brasil. A partir desta última semana, se iniciando no domingo (12), mais uma foi latente. No caso desta atual, diversas cidades e capitais registraram temperaturas entre os 38° e 42° graus. A sensação térmica, em determinados municípios de várias praças, chegou aos quase 60° graus, como por exemplo no Rio de Janeiro.
A verdade é que fenômenos como tais “ondas” de calor não podem ser vistos como e não são mais uma raridade ou eventualidade. De acordo com dados coletados pelo Instituto Nacional De Pesquisas Espaciais (Inpe), no período dos últimos 60 anos — entre 1961 e 2021 — houve um aumento de mais de 40 dias com temperaturas altas extremas (acima dos seis graus de média máxima em um mês) por ano. Chama atenção, principalmente, a crescente a partir dos anos 1990, que saltou de 20 dias de alto calor para 52 datas anuais na última década. Isso já equivale a um ⅐ de todo o ano dedicado a “momentos” com temperaturas muito altas.
Os dados futuros desta década (iniciada em 2021) ainda não foram compilados e medidos, mas a tendência é que esta quantidade de dias aumente consideravelmente. O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) divulgou em seus estudos que os últimos meses no Brasil — especificamente entre julho e outubro — foram os mais quentes desde o início da série histórica.
O levantamento do Inpe considerou também o comportamento das chuvas nas últimas mesmas seis décadas. Nas regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e em partes da Norte houve um aumento do número de dias secos consecutivos (em que uma precipitação de chuvas é inferior a 1mm). Entre 1961 e 1990, havia uma média pontual de 80 a 85 dias secos. Já na última década, o número ultrapassou os cem. Especialmente no Nordeste e nesta compilação de regiões (chamadas de Brasil Central), a porcentagem é de 40% no ano dedicado a apenas datas quentes.
Por outro lado, houve um aumento das chuvas na região Sul de até 30%. No período de referência, a precipitação máxima em cinco dias na região era, em média, de cerca de 140 mm. Esse valor cresceu consideráveis 20mm, chegando a uma média de 160 mm em medições atuais.
Racismo ambiental
Sabendo de todos estes dados, temos também uma questão que ressalta ainda mais os efeitos das mudanças climáticas: o conceito de racismo ambiental. O termo, usado ao descrever situações de injustiça social no meio ambiental em contexto racializado (pertencentes a minorias étnicas, como indígenas, negros e asiáticos), já é discutido por ambientalistas e dá luz a situações de como a desigualdade no meio ambiente coloca determinados grupos em frente e mais suscetíveis aos efeitos do clima que está mudando.
Na discussão e em trabalhos feitos para a conscientização do racismo ambiental e de seus efeitos ainda mais devastadores juntos às mudanças climáticas, é reivindicado o direito à melhoria da acessibilidade a recursos naturais (como ar limpo, água potável e saneamento); à permissão de tomada de decisão própria de povos originários sobre territórios tradicionais e recursos naturais locais; além de ações combativas à iminência de queimadas, à contaminação pela extração de recursos naturais, tudo isso junto a iniciativas que remediem situações precárias de infraestrutura em inundações.
Ou seja, exigir tais direitos, para além de serem algo básico à qualidade de vida destas pessoas é sobretudo melhorar pontos que colaboram ainda mais para a desigualdade ambiental entre as populações e que mostram como estas diferenças podem (e vão) ser ainda mais letais e catastróficas para determinados grupos sociais.
Seminário da Emergência Climática
No início de novembro (8), o Observatório da Branquitude organizou um evento que justamente buscava debater a temática. O seminário da Emergência Climática reuniu diversos nomes a fim de discutir a crise climática sob o viés de como o racismo ambiental se entrelaça ainda mais com os efeitos dela nos próximos anos. O Jornalistas Pretos teve a oportunidade de entrevistar Thales Vieira, co-diretor executivo da organização, que falou sobre a iniciativa do seminário e também a respeito da desigualdade do clima e o que ela pode acarretar a populações periféricas, negras e fora dos grandes centros urbanos.
Quando perguntado a respeito do que motivou o seminário e a entrada do Observatório no debate da justiça climática, Thales revelou que o ímpeto foi falar das mudanças no clima, mas ressaltando seus efeitos sobre populações consideradas “invisíveis” para o poder público.
“O ponto de partida para o Observatório da Branquitude fazer uma entrada no campo da justiça climática e do racismo ambiental é o entendimento de que as mudanças climáticas e a emergência do clima que vive o mundo são frutos de uma intencionalidade real de tomadas de decisões de pessoas que ocupam os espaços de poder, em sua maioria pessoas brancas. Ao tomar essas decisões, ao construir políticas, ao fazer acordos com grandes corporações, isso tudo atinge desproporcionalmente as pessoas. As mudanças climáticas afetam todos, mas sejam pessoas negras, sejam pessoas indígenas, pessoas em situações de vulnerabilidade social financeiras, a coisa ainda piora. O poder adota a perspectiva do e para os grandes centros, ignoram estas pessoas nestas outras áreas, são invisíveis. Então isto faz com que os efeitos da emergência climática sejam sentidos de forma desproporcional.
A gente encarou com uma responsabilidade nossa, enquanto Observatório da Branquitude, enfrentar esse tema. Estar no front dos debates [da mudança climática] é importante para a gente poder responsabilizar aqueles que são os verdadeiros culpados por essa emergência climática, que fazem com essas populações racializadas sofram os efeitos desproporcionais. Para além disso, temos que dar luz ao tema sob um viés que a grande mídia não fala, então também há essa diferenciação.”
Thales também falou sobre os desafios que o debate da justiça climática tem de enfrentar. O pesquisador ressaltou, sobretudo, barreiras de mapeamento e monitoramento técnica como alguns dos maiores e mais importantes pontos de aprimoramento na conscientização e no ato físico de atenuar efeitos das mudanças ambientais ao longo dos próximos anos.”Os desafios vão ter que abraçar pontos mais técnicos, para além do social, que é importante. Monitorar o acesso a água potável, a exposição agentes climáticos etc. Investir no desafio de dados de acesso, compreensão deles, reconhecimento de dados produzidos junto ao cruzamento dos dados socioeconômicos e raciais e somar isso com os dados de efeito climático e de monitoramento desse efeito iminente é o fundamental. Precisamos investir mais ainda na medição de qualidade do ar, monitoramento da qualidade da água e etc.”, ele explica.
Vieira também falou que os grandes centros de investimento no combate efetivo às consequências das mudanças climáticas devem focar em dados etnográficos nas regiões afetadas por determinadas doenças de veiculação hídrica, causadas intrinsecamente pelas faltas de saneamento básico e consumo potável de água.
“Recentemente, por exemplo, uma organização do Rio de Janeiro, chamada Casa Fluminense, lançou o Mapa da Desigualdade. Um dos dados que mais me chamou muita atenção fala sobre pessoas negras internadas por doenças de veiculação hídrica, doenças relacionadas à qualidade da água e tanto, diretamente, gastroenterite, quanto doenças relacionadas à parasitas.
Esse dado de pessoas internadas com doenças de veiculação hídrica tem uma relação alarmante em cidades como, por exemplo, Belford Roxo e Mesquita, onde 98% das pessoas internadas com doenças de veiculação hídrica são pessoas negras. Em Nova Iguaçu, 93%. Em Guapimirim, 100% das pessoas internadas por doenças de veiculação hídrica para pessoas negras. Por esses dados de contaminação a gente pode ter uma ideia de quais regiões devem ter uma atenção e de quem está ainda mais vulnerável aos efeitos das mudanças climáticas. Se essas pessoas estão adoecendo pela falta do básico, como vão suportar o extremo no clima? Não têm condições para elas. E nos dados, são majoritariamente negros, é um fato.”
Na entrevista, também perguntamos a função do social no papel de atenuar as mudanças climáticas para populações negras, periféricas e pouco contempladas por políticas públicas. Thales aproveitou para elogiar a importância de organizações não governamentais do movimento negro que estão, ao seu ver, ajudando a amplificar o debate da justiça ambiental sob o viés racial.
“Há organizações muito importantes do movimento negro construindo um debate qualificadissimo sobre as mudanças climáticas e sobre justiça ambiental. Posso citar aqui o Instituto de Referência Negra Peregum, em São Paulo; o LabJaca, no Rio; o Perifa Connection. Então tem várias organizações que são negras, feitas principalmente por jovens, com lideranças femininas pretas, sobretudo, construindo um debate de muita qualidade sobre esse tema importante. O que precisamos é dar amplitude para as vozes dessas organizações e para essas lideranças, porque sem isso a população vai ficar falando para convertidos, para o senso comum, de brancos para brancos.”
O pesquisador ainda ressaltou a importância dessas e de outras lideranças negras para a mudança de perspectiva dentro de debates sobre o clima.
“Tem uma outra questão também. Dar amplitude para essas vozes mexe no que é reconhecido como ‘comunidade climática’. Comunidade que nada mais é do que uma comunidade de especialistas brancos masculinos ‘letrada’ e ‘bem-nascida’. E essa comunidade precisa mudar, há um cenário de especialistas negros, uma cena de debatedores de clima, sobretudo feminina negra, que vem falando com muita qualidade, autoridade e base há um certo tempo sobre justiça ambiental. Dar voz à eles mexe não só no conceito da ‘comunidade’ dita séria do clima, como mostra que esse debate pode e deve ser muito mais amplo do que falam. É meu, e o papel de toda a comunicação, garantir isso. Para enriquecer o tema, mostrar outros pontos, sair doque a gente pensa o que é e quem só vai ser afetado por um aquecimento global ou uma mudança climática.”
Perguntado sobre qual seria o futuro da discussão na sociedade a respeito da justiça climática e sobre os desafios que a comunidade negra pode encarar acerca da questão, Thales pontuou duas frentes de conflito a serem enfrentadas: uma relacionada aos negacionistas naturais das mudanças no clima, outra oriunda dos presentes dentro do próprio grupo político progressista.
“O movimento negro ele tem e terá ainda mais no futuro um duplo enfrentamento no debate do racismo ambiental. Vai se intensificar a disputa com movimentos mais progressistas que reconhecem a emergência climática, mas não reconhecem os efeitos desproporcionais dela na população negra; e com, claro, os negacionistas do clima, que já naturalmente desdenham das mudanças climáticas e nem sequer têm contato com o debate de justiça do clima. Nesses não há conversa alguma, colocam estudo como falácia e se negam.
Abordar esses efeitos sobretudo em populações carentes socialmente e racializadas mexe com o habitual. E dentro dessas duas frentes há muita coisa estruturalmente falada e pensada. Uma para o equívoco completo e a outra até bem intencionada, mas que ignora um ponto fundamental. Não basta o debate das mudanças climáticas ser feito, ele tem que ser feito contemplando todos. E mostrando quem está em desvantagem sobre condições de enfrentá-las. Acredito que nos próximos anos esse debate se intensificará, pois as pessoas vão estar mais atentas, mas temos que ver as fragilidades e os erros de como tudo é abordado.”
Selma Dealdina Mbaye — quilombola, pesquisadora e estudiosa da temática, além de integrante da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) — também ressaltou a importância do debate da justiça ambiental sob um viés revolucionário, contra uma comunicação que estruturalmente dá luz e cobre tragédias ou manifestações climáticas extremas em áreas sempre determinadas nos centros urbanos sudestinos e majoritariamente brancos.
“As catástrofes, os crimes ambientais, os desastres ambientais, eles também têm sua cota de solidariedade. Quando é um crime ambiental contra uma região abastada branca é conveniente mostrar, comunicar. As pessoas se manifestam. Quando são pessoas pretas pobres em bairros periféricos, incêndio e queimadas em territórios quilombolas, não se tem essa cobertura midiática e se tem ela é muito pontual, muito singular, restrita. O brasileiro aprendeu a usar a solidariedade a conta-gotas; pelo que é conveniente, ele vai lá e mostra um apoio total. Não há como combater e debater a mudança climática sem perpassar a discussão do racismo e da cobertura comunicacional sobre o que pessoas pretas passam.”
A especialista também relata a importância da sociedade se manter estudada sobre o quanto o debate de justiça do clima perpassa discussões e matérias sobre altas temperaturas, enchentes, etc. Mbaye ressalta que incentivos territoriais de grandes empresas e indústrias, muitas vezes apoiados sob o argumento do “desenvolvimento”, ajudam a manter e crescer as mudanças climáticas e principalmente, o racismo ambiental.
“As pessoas precisam compreender que os nossos territórios quilombolas diminuídos, que são colocados na mira da ganância, da especulação imobiliária, para ampliação das fronteiras agrícolas, do tal “desenvolvimento”, corrobora isso tudo. Não são nos grandes latifúndios, nas fazendas que esses projetos estão, são majoritariamente em territórios naturais, dos quilombolas, terrenos agricultáveis. Debate ambiental tem de passar por uma reforma agrária em todos os aspectos, titulação dos territórios quilombolas inclusive.”, diz Selma.
Mbaye também aproveita e diz estar esperançosa que o debate de justiça ambiental se fortaleça. Entretanto, aproveita para fazer um apelo:
“É lamentável que a população quilombola, sobretudo, que tenta, preserva e cuida de si por conta própria, sem muitas das vezes o amparo e a cobertura financeira e política das ‘grandes instituições’, sejamos os maiores prejudicados nessa questão do debate climático, principalmente por causa das queimadas, etc. Sempre tivemos aqui, protegendo e cuidando sendo guardiões da floresta, das águas, das plantas.
O futuro que acredito é um futuro onde primeiro que o debate ambiental, ele vire um papo universal, onde desde uma criança de dois anos que aprendeu a falar até os mais velhos conheçam. Que seja algo que role na escola, no cursinho, na prova do vestibular, no jogo de futebol. Acredito que é algo possível, mas esse avanço só vai acontecer quando sairmos de uma perspectiva branca ao analisar e chamar entendedores do tema, principalmente; e ver quem tem condições mínimas de enfrentar tudo que está acontecendo no clima. Temos também que e enegrecer a pauta ambiental, racializar a questão ambiental. É urgente. Precisamos dessa experiência.”
Sobre o seminário, Thales Vieira se disse “muito satisfeito” e elogiou sobretudo o público, presente nos dois dias de evento que contou com mais de dez palestrantes em vários horários.
“Considero o seminário um grande sucesso, fiquei muito feliz com o resultado. Para além dos debatedores e teóricos, conseguimos unir públicos muito participativos. O seminário teve um papel realmente de debater justiça climática amplamente, com os intelectuais do campo da colonialidade, do campo dos estudos críticos e da branquitude, então colocar em diálogo esses dois campos foi uma forma muito interessante do Observatório da Branquitude contribuir com esse debate. Ampliar o tema é sempre necessário, para além de um lado só. Me senti absolutamente realizado e bem sucedido.”
Debate climático
O debate climático é necessário, sempre foi e é agora mais do que nunca. Entretanto, assim como toda discussão, sobre qualquer temática, requer amplitude e, acima de tudo, propriedade. E não há como isso ser feito sem analisar como essas mudanças do clima ocorrerão e quem será afetado por elas. Além disso, é preciso saber quais populações podem ter – a curto prazo, principalmente, dada a gravidade da situação – maiores chances de atenuar os seus efeitos.
Para isso, ampliar o assunto da mudança climática para além das perspectivas — de protagonismo explicativo teórico e de análise aos afetados pela mesma — de determinadas cidades e recortes sociais (tanto financeiros e, claro, raciais) é imprescindível. Principalmente em um país de maioria preta, chega ser absolutamente ingênuo ou leviano não discutir o racismo ambiental, que não apenas existe, mas assola o país e o mundo a cada dia conforme a temperatura sobre por aqui, uma enchente inunda acolá ou um ciclone destrói um continente no outro lado do planeta.
Conseguiremos reverter o que o futuro nos reserva a respeito do clima? Não saberemos e não poderemos prever. Mas podemos ter certeza de algo, de nada adianta tentar frear um perigo iminente sem olhar o todo que ele causa e quem mais ele pode afetar. Debater justiça climática considerando o racismo ambiental e seus efeitos é a verdadeira responsabilidade ecológica, algo além é uma exercício do próprio ego mascarado de boa intenção. E de uma aparente boa intenção até os mais perversos têm.
Apoie jovens negros brasileiros para a COP28!
“Brasil unido em sua diversidade a caminho do futuro sustentável”, esse é o tema que o governo brasileiro escolheu para seu pavilhão na @COP28 – a Conferência das Partes para o Clima das Nações Unidas.
E é com este lema que compartilho esta mensagem com vocês, na esperança de que possamos unir forças para viabilizar a participação de jovens negros nessa importante conferência. Se conhecerem pessoas ou organizações dispostas a contribuir, mesmo que parcialmente, entrem em contato com estes jovens.
É fundamental garantir que as vozes negras, quilombolas, periféricas e indígenas sejam ouvidas.
Agendas importantes como adaptação, perdas e danos, restauração florestal, proteção da biodiversidade entre outras, podem estar perdendo grandes contribuições se não viabilizarmos a participação de vozes negras, quilombolas, periféricas e indígenas.
‘Brasil unido em sua diversidade a caminho do futuro sustentável’ precisa financiar e apoiar os apontados como “diversos” em nosso país.
Saiba mais: https://www.instagram.com/p/CztVYOYOTPU/?img_index=1
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