Disponível na plataforma Globoplay e que conta a trajetória do jornalista Tim Lopes, assassinado em 2002 por traficantes enquanto produzia uma matéria sobre o tráfico, a série documental vem em momento importante em meio a dados alarmantes a respeito da violência contra jornalistas
Por: Kelvyn Araújo
O trabalho da comunicação e, sobretudo, do jornalismo nos últimos anos tem sido bem mais que um serviço de prestação de contas à sociedade. Tem sido um ato de sobrevivência, de resistência perante o substancial risco de violência ou de atentado à própria vida. A violência grave contra jornalistas aumentou consideravelmente nos últimos anos, em especial, na virada pós-pandemia, entre os anos de 2021 e 2022. Coincidentemente (ou não), na mesma época do aumento ainda maior de divulgação em massa de fake news, algo que infelizmente ainda é um problema que enfrentamos hoje – especialmente na era das redes sociais.
Estes tristes fatos são amplificados pelos assustadores números coletados pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), coletados em 2022. Nos primeiros sete meses do ano passado, foram registradas ao todo 66 agressões graves à profissionais. Dentro da amostragem da pesquisa, as agressões envolvem diversas frentes, que vão desde episódios de violência física, passando pela destruição de equipamentos, até ameaças e assassinatos. O número isoladamente pode parecer confuso aos leigos, mas para se ter uma ideia, ele representa um crescimento de 69,2% em comparação com o mesmo período de 2021 – que contabilizou 39 casos em todo o ano.
Analisando os dados de maneira um pouco mais ampla, foram identificadas 291 denúncias relativas às violações da liberdade de imprensa. O número representa 15,5% a mais que nos primeiros sete meses de 2021. Esses casos incluem ainda mais um leque maior de ações, que vão desde à infringimento da transparência da informação e uso abusivo do poder estatal, que vitimaram jornalistas, comunicadores, meios de comunicação e a imprensa de modo mais amplo; até ocorrências de discursos de ódio e afins, além de outras inúmeras questões, que, cá entre nós, se fossem enumeradas devidamente, você, leitor, ficaria a ler esta matéria até amanhã.
Caso Tim Lopes e série documental
Um dos casos mais notórios dessa violência contra jornalistas – que não é algo mais atual, ao contrário do que muitos também pensam – foi o assassinato do jornalista Tim Lopes, ocorrido em 2002. Na ocasião, o repórter foi à comunidade da Vila Cruzeiro a fim de obter imagens que denunciavam o tráfico de drogas na região e acabou sendo morto por traficantes a mando do “chefe” da facção criminosa da região, Elias Maluco. Justamente esse caso foi o gancho para a realização da série documental “Onde Está Tim Lopes?”, dirigida e idealizada por Bruno Quintella, seu filho, e disponibilizada na plataforma de streaming Globoplay agora em 2023. Este ano Tim Lopes também é uma personalidade homenageada no Prêmio + Admirados Jornalistas Negros e Negras do Brasil. O troféu de reconhecimento especial para a revelação do ano leva o seu nome.
Quintella – também jornalista e cineasta – além de abordar a trajetória profissional de Tim, aproveita o pano de fundo da carreira do pai para traçar um paralelo mostrando a realidade das comunidades do Rio de Janeiro hoje, e a relação que a atualidade destes locais e de seu povo conversa com as matérias que Tim Lopes produzira há mais de 20 anos, no mínimo. Baseando-se nisso, entrevistamos Quintella para falar sobre o documentário, Tim, e sobre o Rio de Janeiro de hoje refletido na série documental.
Vale lembrar que o projeto não foi o primeiro feito pelo cineasta a respeito de Tim. “Onde Está Tim Lopes?” chega às plataformas dez anos depois de um filme-documentário sobre o finado jornalista, “Histórias de um arcanjo – Um documentário sobre Tim Lopes”, de 2013. Ao refletir as diferenças na feituras de ambas iniciativas, Quintella enumerou diversas mudanças entre o primeiro documentário e a série, indo desde a sua vida pessoal, como a perspectiva e finalidade distintas das duas obras.
“A principal diferença do filme para série é que o filme realmente foi uma realização pessoal dentro do roteiro. O Guilherme Azevedo (que trabalhou com meu pai, diretor de fotografia e repórter cinematográfico da Globo) me convidou. O filme tem 10 anos de lançado e foi um estouro nos festivais. A partir desse momento tive uma libertação; de um trauma do filho tentando reencontrar o pai através do relato de amigos e pessoas convivendo com ele. Para um novo projeto, já poderia ter uma perspectiva mais ampla pois essa parte já tinha abordado. Precisava falar da vida do Tim mas usando a sua obra como análise da realidade da vida das favelas hoje.
Naquele primeiro filme eu também era mais novo, não era pai ainda. Hoje eu tenho filho, então houve principalmente entre estes dois projetos uma mudança de percepção. Nesses 10 anos essa mudança de percepção não foi só pessoal, mas do lado profissional também. Minha percepção de análise de jornalismo foi outra, por várias razões. E minha percepção no jornalismo do estilo de reportagem que ele fazia foi mais entendida ainda quando decidi sair do jornalismo e fui fazer cinema. Hoje, como cineasta, quando eu trabalho com isso com essa produção audiovisual para além do enfoque puro no jornalismo mas algo bem analítico, senti essa liberdade um pouco maior de criação e de poder olhar de fora sob um outro viés, falar nosso recado por um prisma diferente, mais profundo. Nesse segundo projeto me sinto mais livre, mais entendido.”
Bruno Quintella, diretor e idealizador da série documental “Onde Está Tim Lopes?”
Apesar da mudança para este projeto, segundo Quintella, envolver um aspecto mais analítico de como a trajetória jornalística de Tim sobre o mundo conversa com o retrato da realidade e das comunidades hoje, o jornalista e cineasta também ressalta a finalidade emocional da série documental. “Quando comecei propriamente a dirigir o projeto, comecei a escrever um roteiro com o Rodrigo Fonseca. Foi um processo de feitura interessante porque nossa ideia inicial era fazer uma série que cada episódio fosse um caderno de jornal, então inicialmente seria: cidade, esporte, cultura e polícia. E nesse fio da meada, a gente foi mudando a pegada e pensando que poderíamos fazer de outra maneira, retratando a realidade de hoje com o que o Tim Lopes fazia mas como uma homenagem de um jornalista para outro jornalista, do jornalista filho para o jornalista pai. Um mostrando como o que aquele pai fez aponta caminhos e liga alertas para o hoje.”, disse Bruno.
Sobre o ponto do novo projeto mostrar o que Tim Lopes fazia e de como sua trajetória e seu estilo de jornalismo conversa com a atualidade, Bruno relata como a série documental acabou indo para o caminho da homenagem à trajetória olhando para o hoje. Ele ainda complementa dizendo como o trabalho feito hoje retratando a realidade das comunidades por veículos locais, como os projetos Voz da Comunidade e Maré de Notícias, foram importantes para esta angulação roterística para a série.
“A gente queria, tentamos, e acho que conseguimos mapear um pouco a cidade pelas favelas, as áreas conflagradas, pobres e de conflito e retratar essa realidade sob a influência que ecoa hoje ao que o meu pai fazia. Fazer isso dentro desse porte é muito complexo. Você tem o Complexo da Maré, Complexo do Alemão, de Israel, você tem toda a Zona Oeste, a Cidade de Deus, que é muito grande, etc., então a gente percorreu esses locais e queríamos mostrar principalmente nestes lugares o lado cultural e do dia a dia dessas pessoas, e principalmente quem tá disposto a cobrir esse lado cultural, esse dia a dia que ninguém tá assistindo nos telejornais.
Por exemplo, o Voz das Comunidades, do Renê Silva, a gente explica exatamente como nasceu esse projeto e de como essas iniciativas hoje alcançam outras favelas. Hoje tem a Maré de Notícias, que é gigante também, e há essa iniciativa em outros lugares. Fomos para a Baixa do Sapateiro, Parque União, Vila do João. Fomos para Vigário Geral. Ironicamente o Elias Maluco é cria de Vigário Geral. Traçar a história desses meios não mostrados na grande mídia é também retratar a realidade, como meu pai fazia. Pegar isso e mostrar quem tá seguindo e produz hoje o que o Tim Lopes fazia é importante também.”
Quando perguntado sobre as principais características do pai, Quintella destaca a sagacidade e um certo vanguardismo de Tim ao produzir suas reportagens. O cineasta também ressaltou essa personalidade no processo de feitura do começo de sua última reportagem, que infelizmente acabou não finalizada.
“Ele tinha um olhar muito progressista, de prever o que algo de hoje pode acarretar no amanhã. De ver e falar: ‘Isso aqui vai dar problema lá para frente’. E ele denunciava, mostrava isso, se as autoridades não fizessem nada ele retomava esses temas. […] Sempre achei que ele recebeu aquela denúncia [na Vila Cruzeiro, que acabou acarretando na feitura da reportagem que tirou a vida de Tim], foi chegar lá, percebeu que talvez fosse difícil entrar no baile com o equipamento da microcâmera, etc, e partiu para um outro tipo de abordagem.
Meu pai tinha 51 anos de idade, acima do peso, grisalho. Ele no baile funk seria estranho, não usual, chamaria atenção. Poderiam achar que ele fosse um policial, ou algo do tipo. Ele percebeu que além de arriscado, poderia achar uma coisa mais interessante, um gancho pra algo mais complexo. Já falei em alguns lugares isso. Uma possibilidade de tráfico de armas, venda de armas, não se sabe muito bem ao certo o que era feito (não colocamos isso na série porque não queremos polemizar sobre, ela é uma homenagem ao legado do Tim Lopes) e isso acabou custando a vida dele, infelizmente.”
Tim Lopes, jornalista e pai de Bruno Quintella, morto em 2002 por traficantes enquanto produzia uma reportagem na Vila Cruzeiro, comunidade do Rio de Janeiro
Por fim, Quintella ressalta a importância da série documental e de como a reportagem e o processo jornalístico de Tim é muito mais difícil de se fazer na atualidade, justamente devido ao alto grau de violência para com a imprensa.
“Quisemos fazer um mapeamento da cidade do Rio de Janeiro hoje e contar uma história do que é a realidade dessa cidade pela perspectiva do Tim Lopes, no passado, presente e no hoje. Não reproduzir o estilo das reportagens que ele fazia isso, porque isso é impossível, mas sim tentar através da pesquisa das reportagens dele fazer uma ligação entre passado, presente e apontando para o futuro como seria esse olhar dele e quem hoje poderia compartilhar desse olhar. Jovens, jornalistas, estudantes de jornalismo, jornalismo contemporâneo, colegas de profissão dele da mesma época, né. Inclusive os mais velhos que estão na ativa e que ele admirava, como o Elio Gaspari e o Jânio de Freitas.
Então essa radiografia, essa percepção que ele tinha, essa decupagem social urbana que ele fazia e transformava em reportagem é algo que eu acho dificílimo de encontrar hoje. Fazer um jornalismo tão imersivo é complicadíssimo hoje. Por contas das linhas editoriais, que estão cada vez mais estão apontando para um lado comercial, que não necessariamente é o da demanda do povo e também pela questão da segurança pública. O jornalista, tanto quanto o repórter hoje, tem um grande dilema para sair e fazer uma reportagem, pois pode entrar em um conflito armado. No Brasil, a morte de jornalistas não é baixa, mas há algo alarmante nesse meio: a morte de jornalistas assassinados por encomenda ou retaliação supera o número de jornalistas mortos em confronto. É algo que precisamos ficar atentos.”
O cineasta e jornalista também cita exemplos de casos que o chocaram e que também seguem e mostram bem como a linha da violência contra jornalistas é linear e, tristemente, muito substancial. “O Gelson Domingos [repórter cinematográfico da Bandeirantes, morto em 2011 em cobertura de apreensão de drogas] é também um caso clássico. Ele faleceu na favela de Antares. Teve a própria morte do meu pai, além do horrível sequestro da equipe do jornal O Dia, que inclusive teve tortura. A gente tenta mostrar essas modalidades, esse ponto sensível. O caso do Tim, da equipe na favela do Batan [referência à equipe d’O Dia], e do Gelson. Se você pegar esses três casos muito alarmantes, foram 2002, 2008 e 2011. Menos de dez anos de diferença. Muitos próximos. Então é um problema que precisa ser começado a ser solucionado para ontem.”, enfatiza Bruno.
A violência contra jornalistas é algo muito grave e infelizmente, como podemos ver, nada atual. O trabalho para a segurança da imprensa nos mais distintos âmbitos deve ser algo lutado, empatizado e principalmente conferido por todos nós. Tanto a violência verbal quanto o mais extremo dela, a física, ainda são regras no país e dar luz a estes casos é o necessário para todos nós. Entretanto, apesar disso, seguiremos. Vários podem ter sido infelizmente calados, como Tim, Gelson, e tantos outros, contudo cada vez mais e mais vozes e olhos estão abertos e falantes, prontos para cumprirem o papel de retratar e mostrar a sociedade nua e crua. E cada vez mais essas vozes e olhos vão e devem se proliferar por aí, e serão cada vez mais presentes. Hoje, amanhã, e sempre!
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