Por: Maria Eduarda Abreu
A representação de crianças negras no jornalismo brasileiro é cercada por estereótipos negativos que contribuem para perpetuar no imaginário popular a associação de pessoas negras a violência, pobreza e ao crime. Embora existam imagens positivas, elas são publicadas e reproduzidas em menor número se comparadas a de crianças brancas. Apesar de nos últimos anos alguns projetos, principalmente da comunicação independente, buscarem o fortalecimento e ampliação de narrativas positivas a respeito da infância negra, os dados mostram que ainda há muito caminho pela frente para que o jornalismo seja um aliado eficaz no combate a produções midiáticas que marginalizam e discriminam crianças negras.
Se de forma geral a mídia tradicional não dá espaço para que crianças tenham voz, mas se apropria constantemente de suas imagens, no caso de crianças negras isso ocorre de maneira mais assídua. Além disso, as fotografias de crianças negras são majoritariamente atreladas a notícias negativas. Em 2019, a pesquisadora e diretora do Coletivo Colo, Thais Furtado, realizou em parceria com a pesquisadora e jornalista Juliana Doretto uma análise das imagens de crianças publicadas na revista Veja daquele ano. O estudo revelou que crianças negras aparecem nas publicações em imagens mais fragilizadas ou em imagens violentas com maior frequência se
comparadas com as imagens publicadas de crianças brancas.
As pesquisadoras identificaram uma disparidade preocupante na representação de crianças nos meios de comunicação. Enquanto a voz das crianças quase não aparecem nas revistas, jornais e televisão, sua imagem é amplamente explorada. Esse desequilíbrio é atribuído à dificuldade que os repórteres encontram ao tentar entrevistar crianças, devido à falta de controle sobre seu comportamento e à falta de preparação para lidar com respostas sinceras e as nuances típicas de fontes infantojuvenis.
Manuais de redação e infância
Além disso, as pesquisadoras conduziram uma análise dos manuais de redação dos principais jornais do país, a fim de compreender como a infância e as crianças eram abordadas. Segundo Thais Furtado, esses manuais priorizam mais as preocupações relacionadas à própria publicação do que às questões relacionadas às crianças. Isto é, o foco parece estar mais na legalidade das ações para evitar consequências legais e uma repercussão negativa para o veículo do que na representação adequada das crianças e de suas experiências.
“É importante destacar que toda legislação brasileira que se refere às crianças diz que a criança tem direito a proteção e a participação, então o jornalismo tem que cuidar dessas duas coisas: de que ela seja protegida, mas ao mesmo tempo possa participar da vida social sendo uma fonte com características específicas”, explica a jornalista.
Imagens devem denunciar sem revitimizar
O fotojornalismo, dentre outras possibilidades, utiliza de imagens como forma de denunciar e sensibilizar a sociedade a respeito de algumas situações. No entanto, as formas como as imagens são enquadradas e apresentadas podem gerar repercussões diferentes do esperado ou trazer debates importantes. É o caso da fotografia tirada pela fotógrafa Selma Souza, do jornal Voz das Comunidades, que apresenta crianças negras chorando durante o enterro de Thiago Menezes, de 13 anos, morto em uma ação policial na Cidade de Deus, Rio de Janeiro.
“Por um lado isso é ruim, mas por outro lado as pessoas que estão sentadas no conforto do
seu lar que não tem caveirão batendo na porta, que não assistem tiroteio, sentiriam a dor
daquelas crianças se não tivessem visto a foto? É uma imagem que choca. Não me orgulho de
ter feito, não era essa imagem que eu queria fazer, mas ao mesmo tempo é uma imagem que
vai ficar para sempre guardada na cabeça de toda pessoa que usar arma quando apertar o
gatilho. O estrago que faz quando uma bala acerta uma criança, um pai de família, uma mãe
de família.”, contou Selma durante um debate realizado pelo Coletivo de Jornalismo
Infantojuvenil – COLO.
Para Thais Furtado, as imagens também devem ser responsáveis por fazer a sociedade refletir. “Temos que ter o cuidado para não revitimizar as crianças e saber que elas têm uma identidade própria, mas ao mesmo tempo ela [a imagem] serve também para que a sociedade pense na estupidez que é matar uma criança seja ela negra ou branca e sabemos que casos de violência policial e outros tipos de violência afetam mais crianças e adultos negros”, pontua.
O que diz a lei
O direito à imagem permite que a pessoa utilize e reproduza a própria imagem havendo ou não carácter comercial, além de possibilitar a vedação de reprodução indevida ou injustificada. Por isso, para uso em atividades jornalísticas as imagens devem ter sido previamente autorizadas pela pessoa filmada ou fotografada. No caso de crianças e menores de idade de modo geral a autorização deve ser concedida por pais e responsáveis.
No Brasil, crianças e adolescentes são protegidos legalmente contra toda e qualquer forma de exploração e exposição de imagens que sejam prejudiciais à sua integridade física, psíquica e moral. Isso é o que determina o art. 17º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O trecho é um complemento ao que diz o art. 15º do mesmo estatuto sobre o direito desse grupo ao respeito. Além disso, o art. 18º determina que é dever de todos proteger crianças e adolescentes de situações constrangedoras e vexatórias. Já o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros diz em seu art. 6º, inciso VIII, que é dever do jornalista “respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão”.
Boas práticas jornalísticas
O jornalismo ético e responsável deve se ater aos limites entre a liberdade de expressão e a proteção da dignidade das pessoas retratadas em suas pautas. Entre as boas práticas jornalísticas devem estar o cuidado para não reproduzir estereótipos preconceituosos e discriminatórios e a paciência para ouvir e retratar a realidade das crianças também sob sua perspectiva. Além disso, no caso de crianças negras, é fundamental prezar por imagens que abordam a infância negra de forma diversa e positiva. De acordo com Thais Furtado é necessário tentar se colocar no lugar da criança e entender a forma como ela pensa o mundo. “A gente tem que entender que a criança não pensa de um jeito errado ou incompleto ela pensa diferente dos adultos. Não usar diminutivos e colocar o nome da criança quando ouvir ela em uma reportagens são alguns dos cuidados, conta. Para a pesquisadora, os jornalistas devem ter cautela com a exposição de imagens de crianças no geral, mas desde que elas aceitem e seus responsáveis permitam a contribuição em reportagens ou o registro fotográfico é importante garantir a sua participação. participação. “Crianças fazem parte da sociedade e têm direito de serem representadas no jornalismo, o que deve haver é um cuidado que permita a proteção e a participação. Elas têm que ser protegidas para não serem expostas a situações que sejam vexatórias ou constrangedoras, mas ao mesmo tempo elas podem aparecer em situações que sejam de interesse delas, em que estejam opinando e sendo tratadas realmente como fontes jornalísticas”, afirma Thais.
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