Por: Kelvyn Araújo
A chamada Inteligência Artificial (IA) veio para ficar. Fomentada gradativamente há anos por meio de diversas pesquisas tecnológicas, a IA ganhou contornos, evoluções e principalmente desdobramentos nos últimos tempos que nos fazem questionar: qual será o impacto dela no cotidiano futuro, e mais especificamente, na comunicação social?
Quando falamos em comunicação social, se pensa principalmente na área acadêmica e formal da expressão, que engloba trabalhos jornalísticos, publicitários e afins. Mas, se adotarmos uma outra licença poética, podemos definir o termo como norteador das relações comunicativas entre pessoas em um cotidiano cada vez mais integrado. Seja lá qual terminologia a expressão é usada ou lida, há um fato: o incentivo desenfreado a Inteligência Artificial (IA) acarreta, e pode agravar, diversos problemas sociais.
Para analisar tais problemas, conversamos com Tarcízio Silva, mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e doutorando em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC. O especialista dedicou-se a estudar o fenômeno das IAs e seu impacto no cotidiano. Durante a entrevista, ele enumerou os principais pontos negativos do desenvolvimento da Inteligência Artificial hoje para a comunicação e a sociedade.
Ele, inclusive, citou que o incentivo para o início dos estudos nesta área veio de um modus operandi tradicional das IAs, o oligopólio empresarial por trás dele, algo que Tarcízio percebeu em seus estudos. “Tenho me dedicado na pesquisa e na sociedade civil a estudar e promover conhecimento sobre os impactos sociais da tecnologia e como cidadãos podem entender melhor e agir em prol de tecnologias e implementações melhores das tecnologias. Isso aconteceu, sobretudo, por causa da percepção minha e geral de que recursos digitais foram cada vez mais paradoxalmente acumulados em poucos oligopólios globais.”
O pesquisador ainda complementa citando exemplos: “Há uma sigla que costuma ser utilizada que é a GAFAM, que significa ‘Google Amazon Facebook e Microsoft’, para representar um oligopólio de grandes empresas de tecnologia globais que consegue definir o direcionamento de software e sistema algorítmico de plataformas de mídias sociais. Essa concentração diminuiu as possibilidades de um usuário médio da internet. Ele e as pessoas hoje, supostamente inclusas digitais têm um acesso à internet limitado e focada em poucos recursos ou serviços (principalmente aqui no Brasil), mas a web e a internet podem ser muito melhores que isso. Nossos acordos sobre como lidar com tecnologias podem ser muito melhores que isso. Essa deficiência resultou nesse fenômeno dos últimos anos de desinformação, discurso de ódio. E é nisso que foi a minha catapulta para estudar essa área. É possível melhorar nossa relação com a tecnologia. E isso inclui, claro, a implementação da Inteligência Artificial que é incentivada, financiada e aprimorada por esses oligopólios contra informação e busca por uma verdade pelo cidadão médio. E é isso que se precisa combater, a concentração.”, destaca Silva.
A população civil e a regulação
Com o incentivo das IAs e essa busca pela maior democratização real das informações por parte dos cidadãos médios, perguntamos ao pesquisador se ele acredita que as pessoas estão mais céticas ao uso desta tecnologia atualmente. Recentemente, houveram dois episódios latentes de críticas a sociedade civil a respeito das IAs: a onda de protesto de atores e roteiristas nos Estados Unidos contra a crescente utilização de Inteligência Artificial para desempenhar suas funções; e a manifestação de lá (e ocorrida em outras partes do mundo) por parte de jornalistas contra o uso de veículos noticiosos usando a tecnologia para apuração, feitura e diagramação de matérias.
Tarcízio concorda que atualmente a população civil em todo mundo está mais atenta e cética ao uso de IAs, incluindo o Brasil. Ele cita dois pontos que contribuíram para este senso crítico maior: o crescente número de políticas públicas atuais feitas por ativistas; e o debate na sociedade civil, que se depara com o problema quando vê o mercado de trabalho para si diminuir. Puxando este debate, Tarcízio fala da importância destas discussões para a regulamentação do uso das IAs. “O uso corporativo da Inteligência Artificial é tentar cortar custos, empregos e aumentar lucro. Muitas vezes em ambientes não regulados isso significa oferecer um serviço pior para cidadãos ou consumidores. Por exemplo, no mercado de trabalho há softwares de contratação para filtrar currículos. Eles supostamente melhoram a velocidade de contratações, mas cortam empregos de profissionais de recursos humanos e temos um grande histórico de problemas de vários tipos, nessas plataformas utilizando inteligência artificial para filtrar candidatos. As pessoas estão procurando empregos, em contextos de alto desemprego e começam a perceber a dificuldade. Seja em aplicativos do tipo, sejam pessoas especializadas oferecendo trabalho mediado por plataformas que utilizam sistemas algorítmicos e ganham porcentagem em cima de um trabalhador (que não é CLT), etc.”
Tarcízio também complementa dizendo sobre como a ideia do uso das IAs, inicialmente vistas como uma alternativa de tornar práticos os usos do serviços, podem acabar com o tempo se “plataformizando” e prejudicar o empregado comum. Ele define essa “plataformização” da seguinte forma: os uso de IAs nas empresas e sistemas serão tão partes do cotidiano e do uso social (sejam por aplicativos ou sistemas em empresas) que com a estabilidade adquirida, as próprias organizações – que utilizam e se estabilizaram às custas desta tecnologia – criarão regras e condições de trabalho cada vez mais abusivas aos cidadãos comuns, mas impossíveis de recusa por parte dos empregados.
Estes empregados, sem chance alta no mercado e competindo contra uma empresa automatizada que faz o mesmo serviço deles, acabariam sucumbindo a tais ordens. O pesquisador usou como exemplo recente a indústria digital de carros de aplicativos no país – inicialmente vistos como convenientes por oferecerem praticidade nas corridas, eles ganharam popularidade, além de soberania social, e com o tempo passaram a renumerar cada vez menos os motoristas que trabalham para as próprias plataformas empresariais.
É defendida pelo pesquisador a regulamentação das IAs nesse aspecto. Tarcízio enumera que há projetos de lei a respeito da iniciativa, mas pouco conclusivos e eficientes no cerne da questão. Um dos poucos que o especialista considera mais assertivo em relação ao assunto é a PL 2338/2023. O projeto de lei, apresentado pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD), estabelece normas para a implementação, desenvolvimento e uso responsável de sistemas de IA de forma a proteger direitos fundamentais das pessoas, garantir formas de funcionamento confiáveis e, a priori, criar ferramentas seguras de supervisão e fiscalização.
A PL prevê que infrações cometidas por empresas de tecnologia podem ser punidas de diversas formas, indo desde o pagamento de multa entre R$ 50 milhões de reais à 2% do faturamento do grupo econômico até a suspensão de atividades das organizações no segmento de IA. Atualmente aguarda despacho no Senado. “Alguns projetos de lei melhores como este, precisam melhorar muito em termos de combate a discriminação, mas já é um avanço em relação aos demais, que servem todos às grandes empresas, que não querem a regulação”, complementa Tarcízio sobre o tema.
O racismo algorítmico dentro da Inteligência Artificial
Uma das teses estudadas por Tarcízio e outros analistas dos efeitos das IAs é o que muitos chamam de “racismo algorítmico”. Esta tese corrobora outros lados negativos do uso da tecnologia, desta vez com impacto a discriminação de pessoas negras na sociedade. A teoria mostra como o uso de outros serviços da IA, como o reconhecimento facial, geração de vídeos, além da crescente diminuição de espaços de trabalho humano afeta a população negra. Um ponto focal citado pelo especialista são os tipos de Inteligência Artificial: as generativas (que geram conteúdos do zero) e derivativas (que geram produtos baseado em fontes já públicas e produzidas por humanos) e de como elas, em especial a derivativa, colaboram extremamente para esse racismo algorítmico, que utilizam conteúdo humano de banco de imagens, textos e artigos.
Por essas IAs já se basearem em conteúdos prévios produzidos naturalmente por humanos, consequentemente ressaltam ainda mais o racismo de textos, bancos de dados imagéticos, relatórios e afins. Desta vez com um agravante: o uso da tecnologia algorítmica. Tarcízio complementa que o racismo algorítmico tem como ponto principal desenvolver e aprimorar não apenas o código das IAs, mas analisar principalmente a fonte de material deste código e da sua influência socialmente, fora e dentro dos algoritmos. “Dentro das IAs, o de racismo algorítmico e outros tipos de discriminação acontecem por que os sistemas não são testados ou desenvolvidos. Alguns deles nem deveriam ser desenvolvidos, como o reconhecimento facial no espaço público. O racismo algorítmico não aborda somente o código em si, mas as decisões realizadas no processo de poder na decisão de desenvolver, como desenvolver, implementar e quais tecnologias são aceitáveis na sociedade. E claro, o que elas podem acarretar.”
Futuro das IAs: o que pode acontecer?
Quando perguntado sobre o futuro da tecnologia das IAs, Tarcízio revelou a tendência da Inteligência Artificial socialmente ganhar uma “confiança epistêmica”. O conceito, segundo o especialista, está na validação deste sistema algorítmico na procura de fontes de informação, produção de vídeos e de meandros institucionais – incluindo redigir leis, algo já em atividade recente e que causou repercussão. “Sistemas algorítmicos que simulam IAs ganharão mais confiança epistêmica, ou seja, serão considerados mais certos do que debate e especialistas humanos. Também haverá o fato de que recomendações de sistemas algorítmicos sejam alçadas à validade política ou até religiosa, e que sejam percebidos por grupos funcionais como precisos. Isso pode gerar vários impactos nocivos, por exemplo sistema algorítmicos redigindo leis, algo que já está sendo feito. Em próximos passos, sistemas políticos vão ser implementados por alguns grupos para representar decisões políticas como mais neutras, legítimas, ou adequadas ou ainda vão ser utilizados e talvez na forma de divindades religiosas, até.” Ele complementa: “Essa ideologia da neutralidade da tecnologia ao seu operacionalizada por grupos extremistas políticos e religiosos vai facilitar a movimentação de grupos extremistas e a operacionalização de violência relacionada a grupos autoritários.”
O especialista ressalta um importantíssimo ponto: de que a questão não deve ser focada na dúvida de se as IAs vão superar humanos, mas sim do que grupos extremistas vão produzir com Inteligências Artificiais generativas. “A questão não é inteligência artificial conseguir uma consciência equivalente humana. Isso não vai existir. Mas vai ser totalmente factível que as IAs vão ser fontes políticas, divinas ou moralmente corretos por alguns grupos. E aí haverá um impacto, que vai ser violento no sentido de violências e erosões democráticas que podem surgir daí. Eles usarão a IA generativa que consegue emular um texto aparentemente coerente de imagens e vídeos aparentemente reais. Pode ser utilizado em escala por grupos extremistas que vão alegar que são decisões de um sistema inteligente. Esse é um grande risco para o nosso futuro, talvez de curto prazo, não só de médio ou longo.” Por fim, não sabemos como será o futuro dos IAs, mas é importante nos atentarmos a algo tão latente quanto o amanhã delas: o hoje. Já podemos perceber grandes redações as utilizando como fontes; cada vez mais veículos midiáticos usando sistemas como o ChatGPT para criação de listas; utilização de imagens e gravações em áudios falsas; entre outras diversas celeumas.
O uso da tecnologia deve sempre ser cuidadoso ao ponto de um mote principal: o que ela pode trazer de benéfico socialmente. A partir do momento em que perdemos a noção de um vídeo ou áudio ser real, de mercados de trabalho e profissionais necessitados minguarem, e termos um temor maior da falsidade e cada vez menos convicção da veracidade, não podemos estar bem. Por fim, nos basta torcer para um futuro com menos Inteligência Artificial e mais inteligência natural.
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