Sem dúvida, a eleição da segunda negra do continente latino-americano para a chapa presidencial, é um marco histórico. A notícia ganha relevância a partir de um certo critério de passagens importantes da trajetória de um personagem. A vice-presidenta Francía Márquez é conhecida pela imprensa internacional como a ganhadora do Goldman Environmental, distinção importante por sua trajetória na defesa de sua comunidade. Francía também sofreu um atentado com granadas. Teve que se ausentar da Colômbia por questões de segurança. É advogada. Entretanto, na mídia hegemônica brasileira, a sua posição de empregada doméstica ganhou uma importância que não registramos em veículos de outros países.
Intrigada com esta questão, a Rede de Jornalistas Pretos consultou a professora e pesquisadora do Instituto de Romanística da Universidade de Jena, na Alemanha, Jorcemara Cardoso. A linguista também é divulgadora científica e mantém atividades bastante interessantes sobre a questão da produção do discurso em seu perfil Empoderamento Linguístico no instagram.
Jorcemara traçou em seu perfil os sentidos do discurso que foram dados ao, à época, candidato presidencial Gustavo Petro. A professora nos garante que certos questionamentos sobre os sentidos do discurso podem ser temas de pesquisas mais longas e elaboradas como um mestrado ou mesmo um doutorado. Ainda assim, a divulgadora científica traça alguns comentários sobre a possível razão do cargo de empregada doméstica ter ganho tanta importância nos títulos sobre Francía Márquez por aqui.
A pesquisadora da análise do discurso salienta que a chegada de uma mulher negra retinta a mais alta esfera de poder “perturbaria” estruturas sociais bastante conhecidas. Sem contar que as redações são, em maioria esmagadora, comandadas por homens brancos, cisgênero e de classe alta. Este fato também foi comprovado pela pesquisa que a Rede de Jornalistas Pretos pela Diversidade na Comunicação em parceria com o Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (GEMAA) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). As redações brasileiras têm um discurso branco. Oitenta e quatro por cento das redações são ocupadas por jornalistas brancos. A produção de sentidos do discurso tem lógica nesta característica. Por outro lado, a audiência também está acostumada com o apagamento da mulher negra como um personagem importante na historiografia. Jorcemara cita o artigo da antropóloga Rita Segato O Édipo negro: colonialidade e forclusão de gênero e raça que atesta que este desprestígio da trajetória da mulher negra foi apoiado pela universidade.
Jorcemara argumenta que o termo empregada doméstica é ressignificado pela vice-presidenta da Colômbia como símbolo de uma importante luta política. Em uma matéria para o jornal El Tiempo, ela declara que trabalhou como doméstica para que seus filhos seguissem adiante. Fato este comprovado com Carlos Adrián, que estuda medicina em Cuba e Kevin, já graduado, estuda inglês em Houston. A professora Cardoso diz que Lélia González já colocava em seus textos como Racismo e Sexismo na cultura brasileira , que esta aparentemente simples doméstica daria uma rasteira na sociedade brasileira.
No mesmo dia da posse da vice da Colômbia, 7 de agosto, a sua vida amorosa já era especulada pela imprensa. A Rede JP também pediu à professora Jorcemara que pudesse tecer alguns comentários sobre este interesse. Também questionamos por que isso não ocorre com os políticos homens. A linguista responde que os tratamentos realmente são diferentes devido à influência da misoginia e do sexismo. “Como postei, recentemente, no perfil do Empoderamento Linguístico, a linguagem misógina, recorrente na mídia, tem como norma “diminuir”, “ridicularizar”, “produzir como vulgar”, como “louca”, como “naturalmente frágil”, “naturalmente sentimental”, as mulheres que se manifestem e lutem por suas liberdades de pensamento, sexual, política, racial, religiosa. Ao emergir a variável histórica de raça, a misoginia e o sexismo abrem espaço para o racismo político a essa mulher.” Pode-se dizer que ainda há muito o que caminhar para que as mulheres sejam levadas a sério em esferas ainda muito masculinas, brancas e da classe alta. A linguista traz como referência a violência discursiva vivida por Marielle Franco no livro das pesquisadoras Paula Barbosa e Paula Rocha, intitulado “A (re)execução de Marielle Franco a partir das lentes de O Globo no Twitter”. Ela comenta que o livro traz com riqueza de dados a hipersexualização do corpo das mulheres negras. Por este motivo, a gravidez aos 16 anos da vice-presidente da Colômbia também ganha contornos em assuntos da política.
A imagem do instagram da socióloga Rosângela Silva (Janja) sinaliza que, mesmo a esquerda brasileira, a entrada de mulheres negras é ainda muito rara. Sendo assim, temos esperança de que a posse da segunda mulher negra na mais alta esfera de poder de um país da América Latina possa significar um avanço na diversidade racial em diversas esferas sociais.
Francía Márquez no Brasil com lideranças negras
No final de julho, a vice-presidenta Francía Márquez esteve no Brasil. A ganhadora do prêmio Goldman Environmental, o Oscar do Meio Ambiente, encontrou os ex-presidentes Lula e Dilma, bem como lideranças negras e de movimentos sociais.
Yuri Silva, jornalista e jovem líder do Coletivo de Entidades Negras, descreve o encontro com Francía Márquez à Rede de Jornalistas Pretos como emocionante. “Francía Márquez é a esperança de dias melhores. Sua presença e a de Gustavo Petro significam que ventos progressistas estão varrendo a extrema direita do continente.” O jornalista baiano acrescentou que haverá cooperação entre Colômbia e Brasil para o combate ao racismo. Ele lamenta ter ouvido da advogada colombiana que o povo afro colombiano sofre as mesmas mazelas que os brasileiros. Yuri cita que o genocídio da juventude negra colombiana está no mesmo patamar que o Brasil. Ainda que, no censo de 2018, a população afro colombiana corresponda a 6% dos cidadãos colombianos. Já no Brasil, segundo o IBGE, a comunidade negra representa 54% dos brasileiros.
Uma nova Colômbia com um governo de esquerda
A Rede de Jornalistas Pretos conversou com o jornalista colombiano Fidel Juez, Diretor do canal Salud.TV. O canal colombiano se dedica a trazer questões da saúde para o cidadão colombiano divulgando eventos e organizando atividades do setor.
Fidel Juez acredita que o primeiro governo da esquerda na Colômbia tem a tarefa de diminuir as desigualdades. O jornalista comenta que o poder executivo deseja combater a corrupção e estruturar o acesso à educação para a população mais vulnerável do país como as comunidades negra, indígena e rural. Francía também criará o Ministério da Inclusão que atuará sobre cinco eixos temáticos: o econômico, o político, o educacional e o cultural destas comunidades negligenciadas.
Fidel explica que a ascensão de uma importante líder ambiental como a vice-presidenta, fará com que os olhos do mundo estejam bastante atentos à Colômbia. O governo central tem muito interesse no diálogo com os países do norte sobre mudança climática e créditos de carbono. Sendo assim, os ativistas ambientais estariam mais seguros nesta conjuntura.
A Rede JP perguntou sobre a visita de Francía Márquez ao Brasil. Existe a possibilidade de cooperação entre os países no tange diminuir as desigualdades do ponto de vista racial? Fidel garante que a questão racial é fundamental para a agenda política colombiana. A vice-presidenta aposta suas fichas nos diálogos pan-americanos para estruturar soluções para os prejuízos sofridos pela população afro colombiana.
“Este governo conta com expectativas muito altas”, diz o jornalista colombiano. Ele alerta que não será possível resolver todos os problemas em um mandato. Entretanto, a presidência quer implementar formas de vida digna para os colombianos e colombianas. Ele salienta, que a questão da imprensa, concentrada em poucas pessoas, é um desafio. “No momento, é possível pensar no fortalecimento dos meios de comunicação alternativos.” afirma Fidel Juez. Estas mídias alternativas fortalecidas também poderão servir à população nos planos governamentais de combate à pobreza. Juez reflete que este governo deverá contribuir para uma mudança de mentalidade que combata o machismo e racismo estruturais para uma Colômbia que ofereça igualdade de oportunidades.
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